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825- Comunidades de interpretação

autonomiaConsentimento do paciente é expressão do direito à autonomia na medicina contemporânea. A manifestação deve ser vista como um processo. Idealmente, o atendimento é direcionado por sucessões de esclarecimentos do médico, solicitados ou espontâneos, Cada esclarecimento sinaliza composições de prosseguimentos/interrupções/revisões.

Relaciono abaixo 10 tipos de esclarecimentos no âmbito da conexão médico-paciente com que convivi mais recentemente ou diretamente com o paciente ou em temas cuidados por Comitê de Bioética:

  1. Explicar o leque da cogitação de hipóteses diagnósticas e como proceder para ir fechando;
  2. Comentar o prognóstico da evolução natural da doença identificada;
  3. Reverter, controlar ou não deixar agravar como objetivo terapêutico;
  4. Limites do benefício recomendado;
  5. Reais probabilidades dos danos mais inquietantes da terapêutica;
  6. Razão de se tratar de um resultado falso (+);
  7. Limites da medicina ou por não haver tratamento disponível/validado ou porque não se conseguiu chegar ao diagnóstico do caso;
  8. Explicar a não aplicação ao caso do recolhido na internet pelo paciente;
  9. Valor da adesão à conduta pós-procedimento;
  10. Responder à frustração pelo mau resultado.

Entendo que estas 10 situações de dúvidas incluem-se: a) na compreensão do que  medicina é de fato e que o médico vai desenvolvendo desde a faculdade; b) na certeza da distância de uma ciência exata; c) na admissão que indeterminações são frequentes (… haverá recidiva?); d) na noção que resultados dependem de fatores além da excelência na conduta (… individualidades do paciente). Uma constituição peculiar à profissão.

Já o paciente, em princípio um desconhecedor das fundamentações da medicina, sabe mais do que o médico acerca  de: a) si mesmo (como pessoa e como portador/sofredor da doença); b) suas percepções morais; c) suas origens e atualidades culturais. É uma identidade que interage sem maior formalidade ética, habitualmente tomando decisões em breve período de tempo e pretendendo máxima naturalidade em conformidade com a experiência de vida.

Neste contexto, podemos conjecturar que médico e paciente, profissional e leigo, são representantes de distintas comunidades. Pegando carona no crítico literário Stanley Fish (nascido em 1938), comunidades de interpretação são grupos de pessoas que compartilham certas particularidades sustentadas por experiências mais ou menos organizadas. Diferenças de interpretação dos acontecimentos entre comunidades provocam limites na compreensão mútua, especialmente do expositivo e do argumentativo. Razão para o consentimento do paciente – representante de comunidade não versada em medicina- ser livre para se expressar com fidelidade a sua comunidade e esclarecido para que a releitura da recomendação do médico- representante da comunidade versada em medicina – possa ter clareza sobre o modo de ver da comunidade médica.

Deduz-se, então, que é preciso que as representações de distintas comunidades dialoguem para se compreenderem, interagirem e fecharem uma conduta, vale dizer desfazerem as dobras das diferenças de entendimento. Até porque existem, não somente as diferenças de formação e de informação, como também os estilos (self) de acordo com personalidade, caráter e temperamento.

No que concerne à comunidade de interpretação a que pertence o médico, uma sustentação contemporânea é a medicina baseada em evidências que facilita incorporações para uso coletivo. Cada especialista, por exemplo, pensa e atua individualmente, é verdade, mas as condutas a serem selecionadas são extensões de diretrizes clínicas, orientações comunitárias com legitimidade e credibilidade éticas.

A Bioética da Beira do leito empenha-se em contribuir para integrar as interpretações, enriquecer as percepções que profissionais da saúde, paciente e familiar fazem de acordo com cada bagagem de realidades/imaginação/memória das vidas profissional e pessoal.

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