PUBLICAÇÕES DESDE 2014

556- A força do paternalismo fraco (Parte 2)

Conexão BLlivroNa passagem de leigo a profissional, o ainda  estudante de medicina é de modo pavloviano (Ivan Petrovich Pavlov, 1849-1936) condicionado a reagir à presença do paciente – bem evidente nas emergências-  pelo exercício do poder da Medicina, vale dizer, alinhavar hipóteses diagnósticas, discernir os tratamentos e orientar prevenções.

Ao se formar, o médico sabe da sua capacidade para causar ou impedir mudanças na doença/saúde do paciente. Mas, nem sempre a diplomação lhe previne que o poder só existe, de fato, se houver chance de oposição, senão será força. A Bioética cuida para revelar o contrapoder do paciente que, atualmente, salienta-se na figura do binômio autonomia-consentimento.

Pode-se dizer que há inclinações contraditórias envolvidas no receio do  médico de vir a ser acusado de imprudência/negligência. De  um lado, ocorre uma sensação de liberdade profissional pelo domínio do racional da Medicina, sente-se em porto seguro; de outro lado, o médico aprisiona-se ao emocional do momento conflituoso, sente-se inseguro. A insegurança pode ser dominante. “… Professor, o não consentimento do paciente não limita a excelência profissional que almejo?…” “… Não se você enxergar o paciente como um receptor de entendimentos e não tão somente como um emissor de sinais e sintomas…”.

Um excesso de receio de ser acusável e punível por antiético pode se encaixar no conceito de Hipocondria moral, ou seja, achar que vai ficar com culpa, mesmo quando uma observação isenta atestaria legitimidade ética. Por isso, uma reação possível do médico ante o “perigo”, é “sair do sério” e  insistir com o paciente, dar um “empurrãozinho” para que ele concorde consigo, empregando meios de persuasão com agressividade ou mesmo violência verbal. De certa forma, visa a testar  limites, vieses e hábitos. Estará, aí sim, sob risco de plantar contra si  acusações de desrespeito ao direito de escolhas pelo paciente e poderá vir a ser punido por infringência a artigos do Código de Ética Médica. Como se sabe, a diferença entre medicamento e veneno é a dose.

Creio que a ênfase no binômio-autonomia – perfeitamente necessária- destituída da chance de aplicação de paternalismo fraco após o não consentimento (muitas vezes ainda provisório) porque o paternalismo foi demonizado aumenta a probabilidade da manifestação da referida hipocondria moral, que, aliás, é altamente ansiogênica para o médico ético.

Já se passaram algumas décadas desde que o princípio da autonomia assumiu o papel de “mocinho” e o paternalismo de “vilão”. Bruno Bethleim (1903-1990) – o autor de A Psicanálise dos Contos de Fada- nos ensinou que um dos benefícios dos contos de fada para o crescimento interior da criança é o didatismo dos personagens, eles ou são bons ou maus – nunca misturam-  e que certo número de crianças identifica-se com o figurado como mau, não significando nenhum futuro mau caráter. Creio que faz bem para a saúde do sujeito moral de um médico ter a possibilidade de se identificar com o paternalismo -o fraco-, em certas ocasiões, ou seja, não se submeter, obrigatoriamente, ao efeito manada sobre  paternalismo como “lobo mau” da relação médico-paciente.

A História explica o presente. Se fizermos uma análise retrospectiva, chegaremos à conclusão que a motivação para a hierarquização da autonomia foi o abuso de poder do médico, não o uso ético do poder da Medicina. Apesar da razoabilidade da atitude, pensar pelos abusos – exceções- causou certa distorção a respeito da missão do médico de recomendar pelo saber. O Sim! ou o Não! ficou como um ato momentâneo ao final do processo da tomada de decisão, como um pedágio para a aplicação do recomendado, já que a dispensa do diálogo esclarecedor fez parte dos abusos mais emblemáticos, como Tuskegee no Alabama – estudo sobre sífilis-, Willowbrook State School em Nova York- estudo sobre hepatite-, o Dr. Henry Andrews Cotton  (1876-1933) em New Jersey- cirurgia bacteriológica para doenças mentais- e o nazismo.  Os efeitos da distorção precisam ser evitados no ecossistema da beira do leito.

Parece interessante pontuar dois aspectos conceituais no entorno de um não consentimento ainda provisório, que o médico deseja converter para um consentimento. O primeiro diz respeito ao paternalismo libertário- influenciar o comportamento e respeitar a liberdade de escolha-. O segundo refere-se à autonomia de relacionamento alinhada à essência gregária do ser humano que depois que foi expulso do Jardim do Éden precisa crescer nas atitudes por si e pela interação com as demais pessoas, ou seja ser ligado e independente do outro. Assim, a autonomia não deve ser definida de modo restrito, mas numa amplitude de muitos circunstantes… e o médico é um deles, altamente qualificado e bem-vindo sem coerções ou proibições.

Entendo que uma disposição ao paternalismo fraco do médico dá oportunidade, não somente, de proceder a um entendimento mais amplo sobre os aspectos tecnocientíficos, como também para conhecer melhor os valores do paciente- desejos, preferências e objetivos também- que auxiliam a fazer ajustes e reduzir a sensação de acusável e culpável. A “segunda rodada” dá à responsabilidade do médico o sentido de “Estou consciente do porque (não) estou fazendo”.

Se pensarmos que o médico recomenda a um leigo, parece útil que vá fazendo esclarecimentos ao longo do tempo do atendimento. Em outras palavras, é prática pró-consentimento pelo paciente provocar um diálogo esclarecedor com o sentido do acolhimento acompanhando o processo de tomada de decisão que vai da queixa principal à conduta terapêutica.

“Trabalhar o consentimento” por meio de esclarecimentos  aos poucos, à medida da progressão do atendimento, diz respeito, não somente a aspectos tecnocientíficos, como também ao quarteto íntimo do paciente: valores, objetivos, preferências e desejos. Facilita aparar arestas. Assim, se o timing do consentimento não ficar restrito ao final da tomada de decisão, mas consistir num passo a passo desde o início da arquitetura da conduta, fica mais fácil ir transformando Não! e  Talvez! em Sim!, quer por mudanças de opinião do paciente, quer por ajustes conciliatórios. “… Entendi, professor, o consentimento não deve ficar, uma linha de corte momentânea ao final, mas um andar em conjunto…” “… Entendeu certinho, residente…” “… Se o cliente do restaurante participar da elaboração do cardápio, a escolha à mesa ficará mais natural e facilitada…” “… Correto, o problema é arranjar o tempo para o paternalismo fraco acontecer, como você sabe, nós não temos o tempo, o tempo é que nos tem…”.

Fica a provocação: se a grande maioria dos pacientes  no seu direito livre e autônomo manifesta consentimento ao seu médico sem ajustes ou pequenos ajustes, isto não significa que a “vontade” do médico é bem-vinda? Que o paternalismo do aconselhamento costuma ser também da vontade do paciente? Então, se o consentimento não foi num primeiro momento, porque desistir? Assinado:  paternalismo, o fraco.

COMPARTILHE JÁ

Compartilhar no Facebook
Compartilhar no Twitter
Compartilhar no LinkedIn
Compartilhar no Telegram
Compartilhar no WhatsApp
Compartilhar no E-mail

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

POSTS SIMILARES