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1538- Revisitando a Bioética da Beira do leito (Parte 7)

A prudência supõe a incerteza do risco, como disse o filósofo Epicuro de Samos (341 aC- 270 aC), é pela prudência que se escolhe pela comparação entre vantagens e desvantagens, os desejos a serem satisfeitos e os meios para a obtenção dos resultados.  Em suma, a prudência faz as vezes do instinto dos animais, auxilia a separar o que deve ser escolhido do que deve ser evitado, especialmente quando se pode impedir o potencial de risco. Enquanto que a Bioética da Beira do leito estimula a prudência como uma disposição interna do médico, o Código de Ética Médica tem um teor impositivo: É vedado ao médico comportar-se de modo imprudente.

O zelo refere-se ao período pós-consentimento onde o sim do paciente desencadeia a conduta consentida a ser realizada com o máximo de atenção às boas técnicas. Uma eventual não realização de uma conduta recomendável/aplicável/consentida pode caracterizar o antônimo do zelo, ou seja a negligência, um comportamento eticamente vedado ao médico. Considerando que o consentimento é uma estação do atendimento que provoca uma baldeação da prudência para o zelo, o não consentimento do paciente pode perturbar o caminho ético especialmente do jovem médico. Por uma razão que se aproxima do que o psiquiatra Erich Fromm (1900-1980) denominou de hipocondria moral – a pessoa preocupada constantemente em estar culpada. Quando o médico diz ao paciente relutante “o senhor tem que fazer” pode estar mais de modo narcísico preocupado com uma acusação de imprudência do que propriamente com o paciente. O sofrimento desta auto-acusação pode ser minimizado por esta separação entre prudência e zelo no ato do (não) consentimento, algo como fui prudente, fiz as escolhas corretas,  agora quando me disponho a realizá-las com zelo sou impedido no pedágio da autonomia, por isso, saia de mim qualquer sentimento de culpa por imprudência, evidentemente, devidamente anotado no prontuário do paciente.

Na carta da transdisciplinaridade subscrita por Basarab Nicolescu (nascido em 1942), o rigor é um elemento relevante. A Bioética da Beira do leito entende que a relevância do rigor é de natureza tecnocientífica e que não deve haver concessões em relação às essências dos métodos validados. Conflitos de interesse, ganhos secundários, argumentos atravessados, ordens  destituídas  de lógica não devem comprometer a aplicação da prudência,  beneficência e maleficência no processo de tomada de decisão.

Todavia, na hierarquização atual, o direito à autonomia pelo paciente pode escantear o rigor, não sem antes, se possível, haver a oportunidade da aplicação do paternalismo brando.  Assim, em função de nuances do consentimento pelo paciente, concessões para certas flexibilizações do rigor tecnocientífico acontecem no mundo real da beira do leito.  

Abertura para o imprevisível, para o desconhecido, um fundamento da transdisciplinaridade.  Alinha-se com o manejo das evidências em relação à beneficência e à maleficência, disposto pelo Prêmio Nobel da Física Niels Henrik David Bohr (1885 -1962) que o oposto de uma verdade profunda pode ser outra verdade profunda. Também com a prudência por meio da   concepção da ética da responsabilidade onde as apreciações da intenção e da consequência dependem da previsibilidade. Vale para o conselho: faça ao paciente ciente que tomou as devidas providências e está atuando corretamente, mas ao mesmo tempo esteja consciente que possa estar equivocado.  O paciente não tem rascunho, mas, o paciente de hoje pode representar um rascunho para o de amanhã. Como já dito, lápis e borracha sempre atuantes. 

 A tolerância como a capacidade de lidar com as opiniões que se opõem à nossa cabe bem naquele momento em que  o médico esclarece ao paciente a conduta aplicável e o paciente discorda com a liberdade que tem não dá o consentimento. Sendo tolerante com a opinião do paciente, fica mais fácil para o médico  no lugar de duelar palavras duras, procurar entender as razões do não consentimento e assim,   estabelecer novos diálogos. A tolerância facilita também o médico continuar cuidando do paciente embora tenha recebido um não consentimento do paciente para certa conduta. A Bioética da Beira do leito lida com o paradoxo da tolerância, ou seja não se deve tolerar a intolerância, por exemplo  quando ela é convocada para a mediação de conflitos centrados num não consentimento do paciente.  Assim qualquer desvio do médico para o fanatismo em medicina calcado no rigor tecnocientífico que exige, a aplicação da beneficência a qualquer custo apesar do não consentimento do paciente bem esclarecido pode ter a contrapartida tanto da consciência sobre imprevistos e desconhecimentos da tecnociência, a abertura, como da tolerância que faz com que o paciente possa de fato sentir-se livre para dar sua opinião sobre o que julga mais benéfico, menos maléfico e mais prudente.

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