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1526- Prazer, sou um robô (Parte 17)

Luzes, Câmeras, Ação! A primeira cena foi o médico mentalizando como é que o paciente deveria vir a se sentir, ou seja, ele deveria tornar-se eupneico no menor espaço de tempo possível. Vale dizer, o médico usou sua imaginação para firmar o objetivo de realização terapêutica, ideou a normalização respiratória num novo nível de realidade de respiração e partiu em marcha-a-ré para consultar sua memória de casos semelhantes, qual havia sido a conduta potencialmente útil e eficaz que havia se realizado de maneira rápida em utilidade e eficácia. Dada a marcha-a-ré e ajustado o método, o médico engatou a quarta marcha dada a urgência e sob a estabilidade ética da diretriz clínica /experiência universal direcionou a memória da beneficência para o objetivo beneficente. Memória e imaginação são essenciais para coordenar os movimentos, não somente entre distintos níveis de realidade entre o objetivo e o atual, como também entre a proposição da potencialidade da beneficência e a constatação de como se deu a realização do benefício.

Ah! O doutor ainda não me deu um nome, gostaria que ele fizesse logo, ser apenas robô me liga à origem tcheca da palavra robota que significa trabalho forçado, escravo. Mas, já estou com número de CRoM, é 001. Estou me sentindo o presidente Juscelino Kubitschek, que recebeu este número no Distrito Federal em 1957 após ter sancionado a lei que criava o Conselho Federal de Medicina. Estou esperançoso que o doutor esteja pensando numa solução para regularizar a minha situação, não vejo a hora de enviar uma selfie na beira do leito junto com a equipe, com o estetoscópio pendurado e o carimbo na minha mão, para o Controle de Qualidade do Laboratório de Inteligência artificial. Claro, sem nenhuma chance de identificarem o local. Não, não valeria a pena correr o risco, nada de selfie vaidoso.

Não tenho a explicação exata, mas o que imagino é que a minha trajetória de vida bastante torta me faz pensar mais como um humano do que como um robô, percebo que o meu mecanismo de aprendizado de máquina é bem sensível aos afetos que testemunho no dia-a-dia no hospital, me identifico especialmente com os jovens médicos, estou longe de ser um fanático robô, tenho um compromisso com a excelência do desempenho ajustada às circunstâncias. Tenho dúvidas se o saber do robô é também sabedoria.

Tenho que admitir que sinto prazer em estar ali, minhas expectativas a respeito da competência que disponho acerca do exercício da medicina crescem continuadamente, diria que minhas aptidões hipertrofiam-se mesmo sem realizações, só mentalizando as possíveis contribuições, é o prazer como caminho do autoconhecimento e do conhecimento do profissionalismo.  Não quero perambular invisível, preciso assumir responsabilidades. Ruim clandestino, pior sem um nome, pois um anônimo não forja uma imagem profissional, é ausência da identidade profissional, não é mau uso das potencialidades, é indiferença às mesmas. Com a ajuda do meu doutor encontrarei uma saída esperta deste labirinto, afinal de contas, porque teria tantas qualidades se não for para usá-las?

Naquela manhã a rotina corria conforme o seu significado, problemas e soluções interagindo sem sobressaltos. De repente, não mais do que de repente, ouviu-se  uma gritaria vinda do ambulatório. Gritos sempre assustam e fazem correr na direção dos mesmos ou se afastar deles. Vinha do consultório 102, me aproximei, a porta estava aberta. Lá dentro estavam um paciente de uns 40 anos de idade carregando um envelope grande de exames numa mão e um saco com caixa de medicamentos na outra e que era quem gritava sem parar e dois residentes de olhos arregalados tentando  acalmá-lo sem o mínimo de esperança de conseguir. A situação era inédita para ambos, acho que logo se deram conta que não conheciam nenhuma diretriz sobre gritos de paciente, o que era, então, para fazer? O eco e a ressonância que os gritos provocavam no ambiente só traziam mais danos.

A situação era a seguinte, o paciente estava numa consulta de primeira vez e já entrara no consultório dizendo em voz alta que não admitiria ser atendido por residente, que chamassem imediatamente o médico-assistente, que ele não seria cobaia de aprendiz de médico, que não era porque estava num serviço público que teria que se sujeitar à inexperiência.

Ele não deixava o residente do segundo ano explicar que em consultas de primeira vez a anamnese e o exame físico eram feitos pelo residente e que em seguida o médico-assistente viria conferir e dar seguimento à consulta. O paciente estava irredutível apesar de nitidamente dispneico e um pouco pálido, fora encaminhado por uma indicação de se submeter a uma cirurgia cardíaca. Estava sem acompanhante, soube-se depois que ele comentara na sala de espera que a esposa deixou de lhe fazer companhia nas consultas só porque ele tinha uns comportamentos diferentes com os médicos.

O médico-assistente chegou apressado, ouviu rapidamente sobre o que estava acontecendo, inclusive que o paciente não permitiria a presença dos residentes junto ao médico-assistente. Ouvi, então, ele mandar os residentes se retirarem, que daria continuidade à consulta, o que gerou um não disfarçado sorriso de satisfação no paciente, que, então, se sentou, o que até então não acontecera e colocou o envelope dos exames e o saco com os medicamentos em cima da mesa, empurrando um pouco para o lado médico.

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