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1523- Prazer, sou um robô (Parte 14)

Naquele imenso corredor cheio de macas e equipamentos, onde precisava me locomover com cuidado ciente que não tinha um convênio para manutenção, lá no fundo, ficava a sala dos médicos. Fui até lá, imagina que eu não iria, estava vazia. Um quadro na parede que emoldurava um tal de Juramento de Hipócrates com letras grandes destacava-se no ambiente, ele devia ser importante por estar assim destacado sob uma luminária que estava apagada. Acendi e fui lendo linha após linha. Me soava bem, reparei que as frases expressavam preocupação semelhante ao do Asimov de não provocar danos. Depreendi que se um médico precisa ficar esperto para não fazer mal a um ser humano, um robô no hospital deveria ficar igualmente. Repeti as leis da robótica acrescentando uma especificação a hospital. Me integraria na caracterização de um Robô de hospital.

Aprendi que o trabalho no hospital estava estruturado em hierarquias de atividades, as pessoas mais novas numa posição mais baixa, mas o nível de conhecimento era o referencial principal. Percebi um problema para mim, era um novato, inexperiente na prática como um qualquer novato, mas que sabia mais teoria do que todos. Corria o risco de provocar anticorpos – ouvi dizer que anticorpos contra robôs são terríveis e refratários à cortisona – e precisava me policiar para não parecer que me sentia superior pelo domínio do conhecimento., a impressão de arrogância que exala de excessos com a razão. Claro, tudo isto conjecturado, se um dia fosse integrado. Por falar nisso, tem uns dois ou três jovens na turma de residentes que não valorizam a integração deles, quase sempre os vejo nem aí para que os professores falam, estão mais interessados no celular, o que será que eles querem ser? Corcundas é só uma questão de tempo. Celular, vista e pescoço formam um triângulo nada amoroso.

O ambiente hospitalar com tantas coisas sendo feitas ao mesmo tempo, pessoas e equipamentos ocupadíssimos com metas definidas, rotinas respeitadas, um entra e sai contínuo, internações e altas, consumos e reposições de material, entra de plantão, sai de plantão, visita de familiar começando e acabando, discussões fundamentadas, vontades de aprender e de ensinar, alegrias e tristezas, tudo isso juntos e misturados me conquistaram. Estava tão vidrado na atuação humana que uma hora me vi  procurando na internet se havia alguma referência à possibilidade de um robô virar gente de carne e osso, um transrobonismo ou até mesmo um pós-robonismo, achei sobre ciborgue, desliguei rápido, um ciborgue está na contramão da minha pretensão.

Já um pouco mais ambientado, a autoestima melhorada, naquela ambiguidade entre um invisível protegido e a sensação paranoide de um clandestino, me acerquei de uma rodinha que tinha uma meia dúzia de jovens médicos, quatro homens e duas mulheres, eram residentes do primeiro ano que discutiam as dificuldades que percebiam para desempenhar suas tarefas. Falavam com sotaques diferentes, o Brasil é um país extenso e com concentração de centros de excelência em medicina em certas regiões que atraem jovens motivados a passarem um tempo longe de seus domicílios. A maioria se adapta, muitos não voltam, comparações são conselheiras.

Eles pareciam estar cansados, aliás não via um residente que assim não aparentasse. Faziam parte da geração Z e achei os comentários bem lúcidos, eles estavam a fim de encontrar os bons caminhos da medicina e dos relacionamentos com os pacientes e os demais profissionais da saúde com variáveis tão distintas, quando dominavam uma situação, logo surgia outra que exigia ajuste. Se sentiam malabaristas num território sísmico. Se eu fosse pintar um quadro da reunião, nomeá-lo-ia Fermentação hospitalar.

Um médico era mais falante, se expressava com desenvoltura e de certa forma direcionava o assunto e, entre um olhar furtivo e outro no celular, ele revelou que se esforçava ao máximo para saber fielmente aqueles quadros de conduta resumida que estão publicadas nas diretrizes clínicas, inclusive detalhou seus métodos para os decorar. Gabaritaria numa prova, orgulhava-se, pupilas dilatadas como as estátuas de Apolo, revelando a intenção de não perder nenhum fato que acontecesse ao seu redor, ver profundamente, ansioso por crescer profissionalmente. Era do ramo, avaliei com uma ponta de inveja. Inveja de robô é comedida, olha para dentro do invejado sem desejar espoliar, mas ter as mesmas condições, está mais para voracidade por compartilhar necessidades do que para ciúme, pois, não envolve perdas.  No meu caso a dimensão do pertencimento ao hospital. O que senti, o sentimento de inveja, foi um aspecto positivo da inveja alinhado ao exemplo, tomar a experiência daquele residente como um teste sobre se ela importa ou não, sobre o valor de fato para mim. Reconheci-me, ajudou a sedimentar com mais detalhes o que eu pretendo ser e, nesta construção da subjetividade, cooperou para extrair o que não cabe de real no por mim idealizado. Fiquei mais rico, riqueza de robô é imaterial, patrimônio cultural.

Absorto desliguei-me do ambiente por instantes e religuei-me quando quem falava, numa das escapadas de olhar para o celular, foi interrompido por outro residente que se destacava tanto por ser o mais alto do grupo como pela quantidade de canetas de tipos e cores diferentes que estavam no bolso superior do jaleco e que tinha uma tatuagem circular no pescoço que parecia ser um prolongamento do estetoscópio pendurado em seus ombros, era o Junior, filho de um professor da Clínica. Era o único de gravata, uma maneira de preencher um pouquinho o que faltava para ser o médico que seu pai lhe inspirava. Hoje era o filho do professor, amanhã seria o professor cujo pai…

O comentário dele, numa fala mais pausada e gesticulada, foi que o pai chamara sua atenção que conhecer todos aqueles quadros de diretrizes clínicas era útil, precisava saber, mas que era insuficiente porque deixava de lado os fundamentos daquela organização, era pular várias etapas da construção do conhecimento, risco de desabamento por alicerces em areia movediça. Finalizou dizendo que quando se deixam lacunas, elas são comumente preenchidas por analogias e por imaginação, que é quando a inteligência pode conflitar com o desenvolvido pela ciência. Mesmo que se saiba que nem sempre a memória é boa para recordar fontes de conhecimento, resquícios do modo com que ele foi edificado persistem e beneficiam a aplicação. Saber que a penicilina natural resulta da atuação de um ser eucarionte (fungo) sobre um ser procarionte (bactéria), um conhecimento que se deu por acaso, tem um efeito inconsciente sobre o papel da medicina no ecossistema em que vivemos.

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