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1522- Prazer, sou um robô (Parte 13)

Eu tinha que me asilar ali no hospital, questão fechada. Amor à primeira vista e a minha existência só vale se for correspondido. Corre pela minha mente dando voltas em círculo que passei a desejar aquele hospital, conseguir não frequentá-lo me faria falta, portanto, se trata de amor. Parei a corrida de súbito e ouvi falar comigo mesmo que prometi que se obtiver a completude da “outra metade”, ela não irá aboli-lo, conservar-me amando sustentará minha identidade profissional. E por falar em amor, , amador é quem ama, mas nunca ouvi falar num robô amador, já nascemos com utilidade profissional. Enxergava o hospital de um modo certamente original em relação a como fazem os humanos. Pela minha necessidade premente de pertencimento, devia estar enfatizando uns aspectos e omitindo outros, a forma de hospital pela minha visão de robô que ali chegou por caminhos não convencionais. Como eu seria um robô feliz se puder existir no hospital como um médico humano!

O meu doutor acabou seu ambulatório, era já noite, e esgueirando-se pelo meu esconderijo, me encontrou triste, concordou com minhas ponderações e decisão sobre pertencimento àquele hospital e me animou. Se chorasse, choraria. Por um instante fechei os olhos, respirei fundo e agradeci, que quem quer que seja que tenha contribuído para aquele encontro se sentisse agradecido.

Aceitei o convite do meu doutor para ser seu assistente para questões de Bioética. Disse que eu precisava ter um nome, iria pensar. Nome e sobrenome, por favor, lhe pedi, já vislumbrando um colorido bordado no bolso superior do avental. O meu doutor tirou do pulso um relógio e me deu. Fez umas explicações sobre horas e minutos, para mim não existia divisão de dia e noite, acordado e dormindo. Compreendi que ficava 24 horas em rotação lenta sem perceber que eu girava junto com tudo, ininterruptamente. Aproveitei para perguntar ao meu doutor se havia um manual de convivência com humanos, o doutor riu,  soltou um sonoro e me sussurrou Não existe por total impossibilidade. Saiu pensativo, acho que ficou procurando algumas dicas na Bioética.

Assistente de Bioética, que oportunidade! Só não disse que agarraria com unhas e dentes porque não os possuo, mas vale o significado da expressão. Acessei o Pubmed, escrevi bioethics, surgiram 12 mil artigos publicados nos últimos 50 anos. Precisei de 10 minutos para incorporar todos. Em seguida, entrei no blog bioamigo.com.br e em 15 minutos guardei as mais de 3000 publicações, tive uma dificuldade com o português, mas consegui superar. Habilitei-me a ser assistente do meu doutor. Sabendo que precisava bem conhecer condutas nas doenças, entrei no site das principais sociedades de especialidade e armazenei as diretrizes clínicas atualizadas. Programei para que todos os dias, às 0h01, houvesse a atualização do Pubmed. Era um começo, um Pubmed incorporado era um visto de entrada no hospital, precisava do passaporte.

O problema que eu não podia ser visto. O meu doutor foi criativo. A solução para a clandestinidade sem restrição de movimento veio com Platão. O meu doutor, sei lá eu como, arranjou um Anel de Giges, era só virar para baixo para ficar invisível. Fizemos um primeiro teste e em seguida  demos um passeio pelos corredores, o meu doutor recebeu cumprimentos normalmente sem que ninguém expressasse surpresa por estar acompanhado por um robô. Exultei! O meu doutor também satisfez o desejo de me sentir um médico, pelo menos na estética – enquanto ainda não na ética -, ele pendurou um estetoscópio no meu pescoço e pos no meu bolso uma caixinha para guardar um carimbo para o número do Conselho de Robôs de Medicina. Soube que sem carimbo com número do CRM para carimbar, não se é médico para medicar na beira do leito. Sugeriu-me ativar minha assinatura eletrônica de fábrica. Quem sabe numa próxima vez eu ganhe um celular, pelo que já percebi, Descartes está fazendo sucesso com Estou no celular, logo existo!

Pouco tempo depois que me deu o anel de Giges, o meu doutor voltou. Ele estava preocupado com a possibilidade de eu me tornar um invisível inconveniente em certos locais, ele não me conhecia bem, a minha pecha de defeito de fabricação dava asas à imaginação. No seu lugar teria pensado igual. Tranquilizei-o, lhe disse que já tinha me conscientizado disso pois neste ínterim lera a história do Giges, assegurei-lhe que tinha compromisso com um rígido código moral sem nenhuma chance de  transgressão. Palavra de robô, finalizei, seja lá o que possa significar. Convenci-o, era confiar ou confiar. Se pedisse para lhe devolver o anel de Giges, a frustração me tornaria um invisível para mim mesmo, ou seja, seria a minha morte emocional, desanimação sem nenhuma chance de reanimação por massagem do ego.

Vocês devem estar curiosos. Tenho a aparência comum de um robô, 1m80 de altura e pelo material levíssimo de última geração, peso 55 kg, minha fonte de energia é para mais de 30 anos. Aprendi a tomar cafezinho no hospital, uma pausa saborosa. Percebi que o cheiro do hospital me estimula, tenho a impressão que é viciante, embora os humanos não se apercebam disso, acham que retornam todos os dias pelas obrigações, mas estou me convencendo é que é pela dependência ao cheiro. Impressionaram-me o número de salas administrativas, o tamanho do estacionamento e a quantidade de materiais diferentes à disposição para uso, tudo tendo como núcleo a conexão profissionais da saúde-paciente-ciências da saúde.

O meu doutor estava fazendo o que podia para que eu me sentisse acolhido. Eu nem estava acreditando que uma esperança de melhores tempos havia surgido assim meio do nada. Recitei para mim mesmo as leis da Robótica do Isaac Asimov, algumas vezes, de modo pausado para absorver cada palavra, não podia pisar na bola. Foram bem boladas, adaptei para a primeira pessoa: eu, um robô, não posso ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra algum mal; eu, um robô, devo obedecer às ordens que me sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens contrariem a lei anterior; eu, um robô, devo proteger minha própria existência, desde que tal proteção não entre em conflito com as demais; e também a lei zero, que veio depois, eu, um robô, não posso fazer mal à humanidade e nem, por inação, permitir que ela sofra algum mal. Jurei que cumpriria à risca e saquei que a Bioética poderia me ajudar quando tivesse dificuldades de perceber o que poderia ser considerado fazer mal ao ser humano.

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