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36-Velocidade Ética na beira do leito

slowMedicine

Como reaver a Medicina humana do antigamente sem recursos tendo centenas deles agora disponíveis e desejáveis para diagnóstico, prevenção e tratamento?

Como resgatar a Arte Perdida de Curar, o título do livro do famoso Bernard Lown (nascido em 1921), o cardiologista americano Professor de Medicina e fundador e dirigente do  International Physicians for the Prevention of Nuclear War, instituição laureada com o Prêmio Nobel da Paz em 1985?

Muitos trabalham para encontrar soluções para este problema intrincado.  Todos acabam compartilhando a percepção que a modelagem Do que possa pretender exige considerar dois poderosos impactos da modernidade: adversidades multiplicadas a cada inovação somada e  expectativas de eficiência  geradas a cada rotina acrescentada.

Há algumas décadas, Bioética e Humanização pensam e sugerem normatizações, numa roda viva de diversidades da natureza humana. A ortotanásia foi recém incorporada se espelhando no passado onde a ausência de recursos úteis motivava foco máximo na humanização. O inútil passou a ser dito fútil, um sinônimo que soa mais convincente e humano.

Neste contexto, descobri  que um grupo de italianos criou um movimento em prol de uma Medicina mais humana, há poucos anos. Curiosamente, a lesma foi o logotipo escolhido.

Sempre soube que lesma é metonímia de lentidão. Caso este bichinho gosmento aposte corrida com uma tartaruga, ela perde feio. Aliás,  haja paciência para assistir. Mas nunca soube que existia o verbo lesmar. Ele quer dizer andar ou agir lentamente, o Prof. Google –alter ego do Dr. Google- acabou de me ensinar.  Eu lesmo, tu lemas, ele lesma… Desculpe, lesmei e me atrasei. Estaria lesmando seria insuportável.

Neste ponto, o bioamigo deve estar curioso: que italianíssimo movimento simbolizado pela lesma é este que deseja lapidar a Medicina do século XXI?

É a Medicina Lenta. Pelo que pude perceber, ela caminha honrando o nome, mas vale a pena conhecê-la, afinal não cabem rejeições apriorísticas só porque não apreciamos o nome.

Num primeiro momento, a denominação me fez lembrar as queixas habituais, não aquelas da anamnese do paciente, mas as da sociedade.  É o paciente que demorou em ser atendido num Pronto Socorro, que ficou na fila do SUS por muitos meses aguardando para realizar um determinado exame de imagem, que sofreu com a dificuldade de liberação do Convênio para um procedimento. Mas, aí  o movimento teria de ser inverso, uma Medicina anti-lentidão.

Pesquisei mais e verifiquei  que a inspiração para Medicina Lenta foi a Alimentação Lenta, também de origem italiana. É uma ONG  com o objetivo de incentivar  a melhor apreciação dos alimentos,  elevar  a qualidade da refeição e  valorizar  os meios produtivos. Achei legal, menos glutões, mais gourmets.  Mas, assim mesmo, a analogia não ficou clara.

Encontrei a explicação oficial e cuidei para que não houvesse uma tradução macarrônica. Pedi ajuda a um colega versado no idioma italiano: Medicina Lenta é  uma mobilização  -una Associazione senza fini di lucro- com o objetivo de equilibrar a Medicina Rápida.  O nome de batismo é Slow Medicine, não tem denominação em italiano.

OK, entendi. É, na verdade, um contramovimento. Animei-me.

Continuemos com a explanação: a Medicina Rápida direciona  para a tomada de decisão apressada, reativa, reducionista, tecnológica, dispendiosa e frequentemente  associada a adversidades.

Pelo contrário, entendi melhor o significado de Lenta, afinal,  não foi  a apreciação calma e esclarecida que  se mostrou mais justa do que aquela feita num piscar de olhos sobre o título?

Registrei que o contramovimento valoriza um período de  tempo para o paciente observar, pensar, analisar expansão ou redução de opções e construir uma resolução com fácies própria. Nada mais justo, desde que a circunstância clínica permita, obviamente.

Quando olhei novamente para o logotipo, verifiquei que não era uma lesma, eram duas lesmas, uma de frente para a outra.  Distância pequena entre elas, mas creio que se quiserem se abraçar vai demorar uns bons segundos. A propósito, a velocidade da lesma é 1,5 mm/s, quem registrou deve ser um gênio.

Então, saquei que era o médico e o paciente. Também o médico precisa por um pé no freio em muitas conduções de diagnóstico e de terapêutica. Nada de pressa para dar alta, para realizar um procedimento invasivo, para ir já pedindo exames recém validados e incorporados, para empregar a medicina translacional. Ele deve  refrear, na medida do possível, ultraprassagens de etapas de raciocínio ou de fundamentações. Cuidar para dar amplo destaque ao futuro das ações conceitualmente recomendáveis no presente, em função das individualidades do paciente favorecedoras de boas e de más perspectivas.

Ou seja, mais alfaiate, menos prét-à-porter. E o desafio é que o alfaiate está em extinção, ele agora trabalha nos bastidores das diretrizes com medidas-padrão. Está mais acelerado para aprontar e para consumir. Os jovens médicos não sabem o que é separata, que pedíamos ao autor do artigo por carta. Eles têm tudo inseparado de si no smartphone.

A história da Medicina Lenta tem forte ligação com a Cardiologia.  Há  mais de uma década, um cardiologista italiano questionou o pronto encaminhamento ao cardiologista porque traria mais chance de recomendação de uma tecnologia, como o implante de marca-passo artificial. Sem trocadilho, ele fez um alerta contra reações automáticas. O progresso da Tecnociência e a cultura ocidental deveriam ser vistos com mais cuidado, no seu entender.

Retroceder o progresso é complexo. A força motriz da Tecnociência é unidirecional. Mas o problema  não é o progresso em si,  é o abuso que corrompe o bom uso. Todavia, o conceito de abuso é fluido.

Sempre haverá um argumento justificador para a overdose de recursos naquela zona cinzenta de incertezas e de probabilidades.  Quem ficaria guardião da chave da Pureza? Plenamente eficiente para que o médico não se sirva da vulnerabilidade do paciente e o sistema não se sirva da vulnerabilidade do médico para cometer desvios éticos. Totalmente  eficaz  na contraposição da presunção de que estar treinado para usar um martelo faz ver prego em tudo.

Entendo que um dos pontos críticos desta vontade de colocar uma placa de velocidade permitida na beira do leito diz respeito à geriatria. Por mais paradoxal que possa ser esticar o tempo para decisão quando ele está escasseando. Mas é que o racional é hierarquizar a prevenção do malefício.  Compreende, especialmente, dilemas de fazer ou de não fazer o agressivo e o dispendioso, numa visão expandida da terminalidade da vida, e que traz implicações de ordem cultural, social, econômica, filosófica, ética, religiosa etc.., etc…  Idoso é frágil, idoso tem comorbidades, idoso complica mais pós-procedimento, idoso é mais dispendioso, quem não costuma ouvir isso diariamente? Só os pediatras, talvez não.

Ajustar o timer no ponto certo a cada fase do atendimento às necessidades do paciente faz parte da excelência nos cuidados, é uma arte.  Na dualidade entre o desejo de cuidar (eticamente) e o cuidar-se do desejo (não ético), o médico deve ter a firme convicção que o tempo a ser estipulado é moeda do paciente e, assim, que ele gaste como lhe aprouver.  O  problema é combinar com o sistema de saúde e seus momentos “pegar ou ficar largado”.

O conceito de Medicina Lenta mostra boa-fé e incita a um julgamento moral da Medicina.  Manutenção preventiva é sempre bem-vinda, pois a rotina não gosta da crítica. Ele  traz matéria-prima para a Bioética da Beira do leito, mas que precisa passar por filtros da prudência e do zelo para reter certas toxicidades. As mais perigosas estão ligadas à dissociação entre taxar de ilusão certos conceitos universalizados  e  dar-lhes veracidade tornando-os costumes  na região.

Mas  o que possa ser útil, que venha sem lesma. O médico está associado historicamente a animais. Quiron era um centauro e a cobra o representa.  Se um logotipo  com animal se fizesse necessário para a Bioética da Beira do leito, prefiriria pegar carona com outro italiano, o célebre Niccolò di Bernardo dei Machiavelli (1469-1527), e mentalizar a Medicina movimentada pela força (científica)  de um leão e a diligência (de atitude) de uma raposa.

 

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