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107-Um au-au tendimento numa Unidade de Atendimento Humano

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Crédito:http://g1.globo.com/sp/santos-regiao/noticia/2015/04/foto-de-cao-tomando-soro-em-hospital-de-guaruja-sp-gera-polemica-na-web.html

Um cachorro vira-lata foi atendido numa Unidade de Pronto Atendimento no litoral paulista. Virou notícia. Tipo de comunicação que não costuma acontecer com pessoas que lá são cuidadas. A não ser que haja um fato negativo, um não-atendimento, uma interpretação de negligência, inspirando uma manchete de erro médico. Aqui, aconteceu o atendimento e se erro houve, ele resultou em sucesso. Como já se disse, um cachorro morder o homem não motiva uma notícia, mas o inverso…  A circunstância foi que o homem é que se mostrou o amigo do cão, no caso um desconhecido… até então.

A justificativa para a atenção veterinária num ambiente para tratamento de humanos foi um aspecto ético que é destacado no Código de Ética Médica vigente: a iminência de morte, circunstância que dá autoridade ao médico para instituir a conduta pró-vida em caráter de emergência, independente da opinião do paciente ou do representante indicado ou legal. Subentende-se, na ressalva, que o paciente não esteja numa evidente situação de terminalidade de vida, o que tornaria a providência uma distanásia e  que não haja alguma Diretiva Antecipada de Vontade com efeito impeditivo. Ambas condições são, contudo, irrelevantes para o caso do cachorro.

Em tempos onde muitos vêem indiferença na atitude de médicos, o inusitado atendimento não deve ser alvo de julgamento moral do tipo Mas que absurdo! Tanta gente precisando de cuidados com  a saúde! Será que o SUS permite!  Foi fato isolado, ninguém incentivará à repetição, evidentemente. Ele deve ser visto pelo lado  positivo, há uma pedagogia a ser extraída da espontaneidade acontecida. Aparentemente, nenhuma má-fé, apenas a conformidade consigo, numa roupagem imprevista e que superou eventual preocupação com os possíveis críticos.

O estranho  cenário não parece ter causado prejuízo ao atendimento de pacientes, não deve ter havido um consumo de material desabastecedor do local, não consumiu mais do que poucas horas, na verdade foi uma ponte para o encaminhamento correto e seguro de acordo com as boas práticas. Ainda mais digno de consideração, quando se  analisa que ninguém se incomodaria se o “paciente” falecesse por falta do que foi feito “sem a obrigação”.

Nenhum “fiscal do Sarney” deve perder tempo conferindo se houve documentação do atendimento, abertura de prontuário do “paciente”, prescrição com assinatura e carimbo, se o CRM que não CRMV vale, ou que a foto da publicação desrespeitou o sigilo. Amanhã será fato esquecido, no máximo memória perdida em algum canto da internet.

Eu desconheço quem viu o cachorro debilitado na porta do hospital e obedeceu ao seu ontológico sem mais receios. Quem se comportou desta maneira, a meu ver, praticou a virtude da compaixão, mostrou atitude moral que se espera do profissional da saúde ante um sofrimento, embora não de um anima nobili, embora não ajustável ao Princípio Fundamental II do Código de Ética Médica vigente- O alvo de toda a atenção do médico  é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional.

Devo supor que quem assim procedeu faz igual com pessoas que se lhe apresentam como pacientes. Que haja uma sensação de alegria amorosa na ajuda ao próximo vulnerável por doença. Hospitais investem muito no resgate desta modalidade de solidariedade, dita Humanização, nos cuidados com a saúde. Prefiro, assim, fazer uma leitura positiva do caso, a de vitrine da instituição de saúde em questão, pelo menos dos personagens envolvidos. Ponho a cara a bater, claro, pela chance de a leitura ser rebaixada numa açodada classificação de  ingenuidade da minha parte. Mas, serei coerente com a visão de benefício individualizado e seguro apregoada pela Bioética. O caso em si, tipo de paciente à parte, deve ser visto como expressão da dedicação de um profissional da saúde perante sofrimento alheio.

Alguém exclamará que cachorro não é um humano! É verdade, embora muitas pessoas estejam com dúvidas. Testemunhamos pelas ruas, em shoppings, até em praias e, especialmente nas residências, cães e gatos serem “humanizados” por humanos. Cresce o número de pessoas que direcionam a sua afetividade para o cachorro, qual mãe zelosa pelo filho, dividindo-a, claro, com o inseparável aparelho celular. Mão na coleira, olho na telinha não é da Humanidade atual?

Neste mundo tecnológico e animal, vários seres humanos assim agem concordando com o bem humorado escritor norte-americano Samuel Langhorne Clemens (1835-1910), mais conhecido pelo pseudônimo Mark Twain, que escreveu: “… Se você adota um cão faminto e faz com que prospere, ele não o morderá. Esta é a principal diferença entre o cão e o homem…”. Sociólogos, antropólogos, psicólogos têm apresentado os porquês desta modalidade de preferência de companhia, de amizade, de familiaridade.

O chamado animal de estimação tornou-se um membro da família, tem nome de gente, não dorme mais na tradicional casa de cachorro no quintal onde crianças engatinhavam lá para dentro, ele fica dentro da casa da criança, sobre móveis de conforto, inclusive, sofá e cama, o osso é de brinquedo, a ração balanceada o alimenta. Quando o dono viaja, vai para um hotel que recebe telefonemas ansiosos por saber da adaptação. A expressão viver como um cão significando abandono, desprezo, maltrato  reduziu a sua aplicabilidade linguística. Lembremos da música brega do baiano Euripedes Waldick Soriano (1933-2008):

Eu não sou cachorro, não

Pra viver tão humilhado

Eu não sou cachorro, não

Para ser tão desprezado

O mercado de petshops só cresce. Há vários à disposição nos muitos bairros e cidades. Mas, o cachorro atendido, um vira-lata, foi encaminhado para um canil mesmo. A notícia diz que ele fugiu alguns dias depois. Certamente, não demandou uma faixa de Procura-se com Recompensa, mas a fuga atestou que ele recuperou as forças, que o tratamento foi bem sucedido, aliás o que se espera por quem frequenta uma Unidade de Pronto Atendimento. Quem sabe, ele possa estar rondando o prédio da UPA esperançoso, pelo amor recebido, por ganhar um dono que perpetue a sorte que teve em estar no lugar certo no plantão certo.

Dizem que só há compaixão pelo que se respeita. O respeito aos animais teve um forte incentivo com a afirmação do papa João Paulo 2º, na década de 90, em Carta Encíclica, que os animais têm alma. Movimentos contrários à pesquisa livre em animais surgiram em vários países. No Brasil, a pesquisa em animais foi regulamentada. Cabe ao Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal –CONCEA, órgão do Ministério da Ciência e Tecnologia, estabelecer normas para o uso e cuidados com animais para ensino e pesquisa, além de técnicas para instalação e funcionamento de biotérios, centros de criação e de laboratórios de experimentação animal, como também definir os critérios para o credenciamento de instituições destinadas à criação ou utilização de animais em ensino e pesquisa. E não nos esqueçamos da Sociedade União Internacional Protetora dos Animais, entidade de utilidade pública que existe no Brasil há mais de 70 anos, com relevantes serviços prestados.

Por fim, cabe relembrar o Ministro do Trabalho  no governo Fernando Collor de Mello (nascido em 1949),  o paulista Antonio Rogério Magri (nascido em 1940) que ao ser questionado sobre a utilização de um automóvel oficial do ministério para levar o seu cachorro ao veterinário, respondeu: “…Cachorro também é gente...”.  Cerca de 25 anos depois, talvez Magri  possa ter sido um profeta…

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