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80-Um artigo do Código e cinco poderes. Valha-nos Bioética!

codigoO respeito ao Código de Ética Médica vigente é dever profissional do médico brasileiro. Há cerca de 100 proibições e certo número de ressalvas às mesmas. É preciso alguma interpretação.

Destaco o artigo 31: É vedado ao médico desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.

Ele faz parte do capítulo Relação com pacientes e familiares e sua redação inclui  cinco poderes: 1- do paciente; 2- do médico; 3- do representante do paciente; 4- da Medicina; 5- do  processo de morte.  Ele admite, pois, uma relação de forças que deve se ajustar  à necessidade do cuidado com a saúde numa determinada  circunstância.

Este artigo tem tudo a ver com as movimentações da moralidade das boas práticas ao longo dos últimos anos no Brasil. Ele dá legitimidade à hierarquia mutante dos poderes  na dependência do momento clínico presente no processo de tomada de decisão. A ênfase é para a autonomia do paciente – seu desejo, seu bem-, mas não do modo absoluto, pois admite em prol do seu bem, mesmo quando o desejo do paciente fica subjugado ou vocalizado em seu nome.

A possibilidade de cinco interdependências esquenta as frias palavras aplicáveis numa relação médico-paciente-Medicina. Altas calorias podem acontecer, queimaduras por dilemas morais, inclusive. Pois, o é vedado ao médico com tantas variáveis, torna-se uma fonte de liberdade, a inércia de uma obediência passiva transforma-se numa potência para trabalhar desejos envolvendo o direito à vida.

Na verdade, o artigo 31 reproduz vários níveis de complexidade da relação médico-paciente-Medicina, que aumentam à medida que mais poderes têm chance de competir e que  a gravidade clínica traz proximidades à morte.

Nível 1- Paciente capaz tem uma urticária banal e se recusa a tomar um fármaco anti-histamínico porque num passado teve sonolência que não deseja no momento. A chance da remissão espontânea enfraquece o poder da Medicina na circunstância e o artigo 31 dá o maior poder decisório para o paciente. O médico sabe que a situação não é nem grave nem permanente e o final do atendimento pode ser uma receita para uso, caso o paciente mude de opinião. Não houve imprudência do médico porque o prognóstico era essencialmente benigno e não houve negligência porque não foi dado consentimento a uma aplicação.

Nível 2- Paciente capaz tem diagnóstico de pneumonia e se recusa a tomar  antibiótico porque lera uma entrevista na internet que “está dando muita pneumonia virótica que não responde a antibióticos”.  Aqui o poder resolutivo –técnico-científico- tanto do médico quanto da Medicina é forte. Conceitualmente, pois,  o aspecto ético  constante do artigo 31 é tesoura no cabelo de Sansão. A situação é grave, mas não permanente se for bem cuidada. O risco de agravamento clínico existe. Não obstante, não há preenchimento de critério para iminente risco de morte.  Vale, é verdade, a aplicação do paternalismo fraco, insistir, procurar pessoas com força  de convencimento sobre o paciente, mas nunca a coerção. Prescrição do médico e recusa do paciente, que devem ser registradas adequadamente no prontuário do paciente, não estão em igualdade de condições à luz da ética expressa no artigo 31. O poder do paciente prevalece. Inclui a responsabilidade pelo seu ato.

Nível 3- Paciente capaz tem diagnóstico de insuficiência arterial em membro inferior direito e indicação para amputação acima do joelho. É situação grave e permanente. Altíssimo poder do médico e da Medicina para preservar a vida do paciente em detrimento de parte do seu corpo. O paciente recusa-se a ser submetido à mutilação terapêutica. Sabe-se que o risco de morte está próximo, mas não é iminente, impedindo a aplicação do paternalismo forte. O paternalismo fraco não consegue resultados pró-consentimento do paciente. No momento, prevalece o poder do paciente.  Num futuro bem próximo, o mesmo artigo 31 dará poder maior para médico/Medicina pela inexorável evolução para o agravamento do quadro clínico, fatal se não houver, então,  a cassação do poder do paciente, na figura do poder do iminente risco de morte.

Estes níveis 2 e 3 assustam. Eles demandam pensamentos. Ah! Eles são raros, são figuras de didática!  Engano! Eles existem e quem não se deparou ainda é porque tem um número alto de CRM.  Há muito significado para o médico: deixar de usar um benefício, conquista científica da sociedade ao longo do tempo. Eis o ponto: deixar de usar. Três palavras que formam a chave de uma “solução”. E que se encontra pertinho. Justamente no próximo artigo, o de número 32: É vedado ao médico deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente.

A Bioética colabora para dar a mixagem do artigo 31  com o artigo 32 que privilegia o poder do médico/Medicina. Já comentamos em outro post.

Nível 4- Paciente capaz ou incapaz que se encontra em iminente risco de morte que pode ser revertido pela Medicina. É o caso do paciente que sofre pneumotórax hipertensivo, do acidentado com hemorragia  por rotura do baço ou da parada cardíaca por infarto agudo do miocárdio. Restringe-se o poder do paciente e do seu representante e  alinham-se na máxima hierarquia  os poderes do médico, da Medicina e do processo de morte reversível. Situação peculiar é da pessoa que por tentar o suicídio fica na situação de iminência de morte, cujo desejo transparecido pelo ato, não será respeitado quando atendido pela equipe de Saúde. Não consegui resgatar a publicação – faz uma década pelo menos-, mas lembro-me que a conclusão foi um percentual acima de 75% de agradecimento de um grupo estudado de pessoas que tentaram o suicídio, quando da alta hospitalar, por terem sido salvas.

Nível 5- Paciente incapaz por um acidente vascular cerebral recente em situação de gravidade clínica e com prognóstico de sérias sequelas motoras e cognitivas. A incapacidade racional retira o poder do paciente, mas não coloca médico/Medicina  no topo, pois não há iminente risco de morte. A figura com privilégio ético é a do representante do paciente. Uma pessoa que assume a função de repente ou que já  está previsto por alguma conversa ou por algum documento. “Carta branca” para a equipe de Saúde ou  seleção de consentimentos podem acontecer em nome de  desejos  representados do paciente. A exigência de um olhar multiprofissional e interdisciplinar é clara. Na dependência da evolução, as recomendações médicas inicias de “tudo fazer” podem abrandar, ao mesmo tempo em que não consentimentos do representante do paciente podem virar aceitações otimistas.

Nível 6- Paciente capaz portador de doença que confere um  prognóstico de vida  extremamente reduzido de semanas ou de meses. É situação onde o contexto da  expressão salvo em iminente risco de morte muda porque eventual hierarquização do poder do médico/Medicina  não terá eficácia no impedimento da evolução fatal. Trata-se do poder do processo de morte, que inevitável, não deve restringir desejos do paciente de não se submetera futilidades e à obstinação terapêutica. Triste para todos, mas em prol da dignidade.  A ortotanásia que evita a distanásia é instrumento ético pelo parágrafo único do art. 41:  Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal. A propósito, a circunstância afeta também o artigo 32, pois a aplicação “ipsis literis” poderia ser  impudência, mas, a não aplicação não seria  negligência, na opção por cuidados paliativos.

Nível 7-  Paciente incapaz portador de doença que confere um  prognóstico de vida  extremamente reduzido de semanas ou de meses. O representante do paciente tem a hierarquia da tomada de decisão respeitosa à ética vigente e espera-se que possa manifestar fielmente os desejos que lhe foram confiados. Da mesma forma do nível 5, não são aplicáveis nem a expressão salvo em iminente risco de morte, nem o artigo 32, se houver a  opção por cuidados paliativos e o parágrafo único do artigo 41 fica à disposição.

O Código de Ética Médica organiza, mas a criação de circunstâncias na beira do leito  é infinita e requer caminhos distintos.  Árduos, mas possíveis de serem percorridos. A Bioética facilita os passos.

 

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COMENTÁRIOS

Uma resposta

  1. Brilhante análise Max. Vamos brincar de médico-paciente até certo ponto, depois, quem manda sou Eu, ou eu, depende se estou agindo com pressuposto poder ou medo do artigo 32, deixando outrem atuar sua autonomia, mas sem exageros. A questão também existe em alguns estados americanos que entendem que o desejo antecipado em documento pelo paciente não é uma ordem médica que deva ser seguida pelo profissional de emergência, em momento de crise. Logicamente, o arcaico de nosso CRM nos sinaliza para outros caminhos baseados na comunicação e na humanização da atuação, além de lapidar nossa capacidade de dançar entre códigos, leis, dogmas etc.

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