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117-Ser médico-momento e ser médico-época, sob o olhar da Bioética

olho clínicoO Brasil tem o SUS, considerado excelente em seus fundamentos. Ouve-se amiúde, não obstante, que a Saúde no Brasil não vai bem. Múltiplas causas são apontadas e discutidas. A Medicina expande-se, a relação médico-paciente encolhe.

Estas realidades são fortes motivações para o caminhar da Bioética da Bira do leito. Sobretudo, pelos meandros das justificativas dos atos e das palavras  que se pretende frutíferas  na relação médico-paciente. Uma condução atenta a desvios, a transgressões e a vácuos morais em intenções, ações e comunicações nas tomadas de decisão, nas aplicações dos métodos e nos ajustes subsequentes.

A Bioética da Beira do leito repudia o “anonimato”  do não envolvimento, bem como o silêncio anti-esclarecedor. A placa Silêncio, Hospital não cabe no transito da beira do leito.

Considerando o respeito ao Princípio da Autonomia na forma do consentimento pelo paciente, evidentemente, é o médico quem transforma sintomas e sinais em proposições diagnósticas e terapêuticas. Idealmente, o médico anima com o máximo de entusiasmo o recurso acessível, assim cumprindo o Princípio fundamental II do Código de Ética Médica vigente: Indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas as práticas cientificamente reconhecidas e respeitada a legislação vigente. Mas, e as carências locais? Há o disposto no Princípio fundamental III: Apontar falhas em normas, contratos e práticas internas das instituições em que trabalhe quando as julgar indignas do exercício da profissão ou prejudiciais a si mesmo, ao paciente ou a terceiros, mas o entusiasmo costuma arrefecerE, embora o Código de Ética Médica valha após a formatura, o espírito destes dois  princípios fundamentais deve amparar o internato e repercutir nos professores responsáveis. A Bioética da Beira do leito preocupa-se.

O que é que o médico da beira do leito, aquele que  passa o dia com a cabeça preenchida com as necessidades dos pacientes, pode fazer como contribuição positiva em relação às dissociações entre uso da ciência e humanidades? Particularizo o jovem médico, a frente da força de trabalho que tem sido, em boa parte, sacrificado em sua formação porque  há professores de Medicina que não se constroem como mestres. E que vive também  época do exercício profissional onde órgãos dos sentidos são substituídos por máquinas e onde há a inversão do domínio do tempo, é ele que nos tem e não nós que o temos. O adjetivo complementar ao exame clínico tem mudado de significado nos exames de laboratório incluindo os de imagem. A Bioética da Beira do leito mostra-se atenta a estas transições e procura manter acesa a chama do juízo crítico, tolerante e sensível à peculiaridades de um Brasil continental.

A Bioética da Beira do leito entende que, respeitados os contornos do estado da arte da contemporaneidade, atuações com prudência e com zelo por parte do médico podem se qualificar com “pseudópodos” de raciocínio crítico dotado da visão de responsabilidade. O foco são as “poluções” de ordem cultural, social, política e econômica ao ecossistema da beira do leito. O objetivo é trazer ajustes para mais equilíbrio entre disposições, disponibilidades, dispostos a fazer e seus receptores.

Na beira do leito, predomina o ser médico-momento que influencia uma direção diferente aos acontecimentos – prescrevendo, operando- atuando a partir de uma organização “pronta” para o seu desempenho. O médico-momento fica, de certa maneira, refém da mesma, “algemado” a normas institucionais, a máquinas e à carência do tempo para as individualidades. Ele é capaz de resolver as necessidades clínicas do paciente, é profissional de valor moral, mas nem acrescenta distintos significados nem reverte tendências negativas de atitudes e deixa no ar muitas dissociações entre “eu posso” e “eu deveria”.

A Bioética da Beira do leito estimula o médico-momento a ir além do que faz, valer-se do caráter e da vontade para ampliar o aqui e agora “quadradinho” de um atendimento. Ela anima ao uso de toda a capacidade como profissional e cidadão para comportar-se como médico-época, ou seja, um médico-momento que vai além da rotina, que contribui para aperfeiçoamentos coletivos de algum ponto da relação Medicina-médico-paciente-instituição-sistema de saúde, por inovação ou por resgate de perdas, essenciais para reversão e prevenção de malfeitos, conflitos e insatisfações. Em suma, que suas ações e/ou seus pensamentos tenham impactos históricos na atividade da beira do leito. Trabalho de formiguinha…

Uma leitura com olhar da Bioética do texto abaixo reforça o valor de fundamentos da Medicina que, eternos, precisam ser bem introjetados pelo jovem médico para desenvolver a sua história como médico-momento e  desenvolver a aptidão para ser médico-época de modo ajustado à personalidade e a oportunidades.

O autor das palavras abaixo é Erwin Risak (1899-1968), que foi professor de Medicina da Universidade de Viena. É o prefácio do seu livro Olho Clínico, editado em 1936, dedicado aos seus mestres Franz Chvostek (1835-1884) e Hans Eppinger (1879-1946). A tradução para o português foi realizada pelo Dr. Raul Margarido, professor da Faculdade de Medicina da USP, para a edição da Companhia Melhoramentos de São Paulo. Trata-se de livro de grande valor para quem aprecia a história da Medicina e crê no valor da percepção dos entrelaçamentos das fases do progresso da Medicina para a consciência do que é ser médico humano. Por exemplo, há pedagogia em saber que há 100 anos, o médico preferia ir à casa do paciente para observar sua postura espontânea, os odores do ambiente reveladores de uremia e de coma diabético e a presença de um familiar esperando para fora da porta como indício de preocupação. Cada capítulo reforça a sensação que o olho clínico passou  a sofrer de catarata e que se implantou um cristalino de ultrassonografia, tomografia e ressonância.

OLHO CLÍNICO, PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO, 1936     

É uso consagrado dedicar o autor as primeiras páginas de um livro à apresentação da concatenação dos seus pensamentos, proporcionando ao leitor a compreensão dos seus intituitos.

Quando o meu mestre HANS EPPINGER me incumbiu da tarefa de escrever uma monografia acerca da observação clínica pura, tive de início a impressão nítida de que ela não poderia ser executada satisfatoriamente. 

Como condensar, mesmo em obra de vulto, o produto de séculos de observação médica, e transmitir ao leitor o dom que todo médico só adquire após decênios de trabalho árduo, mas, que, infelizmente, ele leva consigo para a sepultura.

Se, apesar disso, ousei desempenhar, ao menos, sob a forma deste livro, a tarefa que me foi imposta, fi-lo somente consciente de ser discípulo de mestres acadêmicos que, apesar de suas especialidades diferentes, tinha a fama de possuírem o dom da observação clínica, mesmo em Viena, a cidade das glórias médicas.

Se me vem neste momento à memória, em primeiro lugar, o meu inesquecível mestre de anatomia patológica CARL STERNBERG, énão só por não poder resgtar a minha dívida de gratidão em consequência da sua morte prematura, como também pelo fato de ser ele um mestre no diagnóstico macroscópico e me haver pela primeira vez persuadido da possibilidade da visão clínica de conjunto, mesmo no cadáver.

Esre dom não raro provocava a admiração dos clínicos à mesa de necropsia, na descrição do aspecto externo do cadáver. O meu aprendizado cirúrgico sob a direção de Julius v. HOCHENEGG mostrou-me como é possível ao médico provecto fazer um diagnóstico certo com o só auxílio de recursos simples, fornecidos exclusivamente pelos órgãos dos sentidos. Inexcedível nesta tentativa  era sem dúvida o meu primeiro mestre de medicina  interna FRANZ CHVOSTEK, para o qual constituía desígnio máximo habilitar  os seus discípulos a poderem auxiliar a humanidade mesmo longe de todo recurso hospitalar. 

Há amiúdo em todo médico jovem, a tendência para interpretar, na sala de preleções, coo capricho de um nome aureolado, esse exagero aparente de renúncia a qualquer recurso. Só muito mais tarde é que todos os seus discípulos reconheciam ser ainda hoje possível cultivar a arte do diagnóstico fino, com recursos aparentemente simples. 

Deste ponto de vista não têm razão todos aqueles que por isso apontavam CHVOSTEK como atrasado.Ao contrário, ele recebia com satisfação todo método clínico novo, mas se esforçava deliberadamente em conservar a velha escola diagnóstica vienense. Mas tarde me foi de valia inestimável, após a preparação anterior, ter podido colher ensinamentos na oficina de trabalho de Hans EPPINGER. Em ambos predomina a preocupação da visão geral. Um deles, porém, procura conseguir isso pela inspeção externa, ao passo que o outro se esforça por desvendar as correlações íntimas. Mas o apreço de Hans EPPINGER pela outra diretriz ressalta do seu empenho para que este livro saísse de sua clínica.

Sem titubear tomei a resolução de executar a tarefa que me era confiada, pela forma presente. Neste livro depus o que aprendi dos meus mestres, estimulado por eles mesmos, o que me feriu a atenção no trabalho diuturno junto ao leito dos doentes. A sua feição é produto do hábito de conversar  com as novas gerações acadêmicas junto ao leito do doente, ao primeiro exame, sobre o valor de cada um dos sinais mórbidos, e do esforço por esclarecê-las o mais possível acerca da doença em questão.

Não se julgue nem de leve que se tenha tido em vista colocar em segunda plana as insubstituíveis conquistas e recursos da medicina interna. Nem clínico moderno pode nem deve renunciar a comprovar o seu diagnóstico de relance por meio de outros recursos. É exatamente pelo confronto da primeira hipótese que formulada com os resultados das investigações que posteriores de laboratório que se consolida e apura o diagnóstico clínico.

Os recursos modernos devem aguçar os órgãos dos sentidos do médico para que ao menos na ciência médica a máquina não vença o homem. Que o desejo de relações pessoais mais íntimas, entre médico e doente, está em via de crescer consideravelmente no nosso povo, mostra o alcance cada vez maior do apelo dos últimos tempos de restabelecer o hábito quase extinto do médico e amigo da família. 

Desejamos transportar para as páginas deste livro apenas conhecimentos vividos junto ao leito dos doentes, motivo pelo qual nos abstraímos de qualquer indicação bibliográfica. É fato que o médico muitas vezes não percebe como s e opera a concatenação dos pensamentos que o conduz rapidamente à apreensão do conjunto mórbido do seu doente. Evidentemente seria impossível esgotar o assunto, visto por este prisma.

Nenhum caso se enquadra perfeitamente em um esquema e cada um deles exige um interrogatório especial. Este livrinho não pode pois representar o papel de um mapa geográfico exato, mas pretende servir apenas de guia ao médico que tenha de socorrer o doente sem auxílio.

A crítica, seguramente justa, da pequena contribuição científica, oponho apenas o fato de já haver da nossa era médicos que ainda hoje nos enchem de admiração pela sua arte diagnóstica despojada de qualquer recurso.

Tomo a liberdade de repetir:  Que o desejo de relações pessoais mais íntimas, entre médico e doente, está em via de crescer consideravelmente no nosso povo, mostra o alcance cada vez maior do apelo dos últimos tempos de restabelecer o hábito quase extinto do médico e amigo da família. E  reforçar que a constatação foi feita há 80 anos. Pois, é  desejo da Bioética da Beira do leito contribuir para a discussão do significado das relações pessoais entre médico e paciente na atualidade do profissionalismo, a medida do envolvimento sem piequice perante nossas realidades. Em outras palavras, o quanto o ser médico-momento e o ser médico-época poderiam efetiva e eticamente favorecer algum grau de atenuação em A Saúde no Brasil não vai bem! 

 

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