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34-Religiosidade na beira do leito

imagesOutro dia, numa palestra sobre Bioética, me perguntaram se era verdade que Bioética ignora Religião. Claro que não, eu respondi de imediato. Expliquei que a Bioética da Beira do leito tem forte cunho prático e, por isso, lida com as expectativas geradas pela crença religiosa.

Mas não é verdade que a Bioética prioriza a ciência que não entende que uma evolução clínica possa depender de divindades, milagres e do poder da reza? Insistiu o colega sentado na primeira fila do auditório.

Como é o seu nome, indaguei…  Pedro Carlos, o que acontece, ponderei-lhe, é que as evidências científicas que o princípio da Beneficência tanto recomenda não costumam fundamentar-se em aspectos teológicos, mas que este princípio é, apenas, um ponto da Bioética da Beira do leito. As evidências são postulados da Medicina que sustentam recomendações com credibilidade e com legitimidade para admiti-las úteis e eficazes para as necessidades do paciente, mas não dizemos que elas são as únicas fontes de utilidade e de eficácia. Ademais, a Bioética da Beira do leito valoriza  escolhas do paciente e as justificativas para as mesmas  podem ter nítida influência religiosa que  deve ser respeitada, finalizei, observando um aceno de cabeça positivo do Pedro Carlos.

A Bioética da Beira do leito destaca, por um lado, que não há diretriz que recomenda ao médico incluir os hábitos religiosos do paciente na prescrição, e, por outro lado, que haja respeito a posições religiosas, que os valores do paciente sejam considerados, que a ciência  trabalha para desvendar a Natureza mas ninguém deve desdizer quem  entende que mistérios da vida e da morte ultrapassam uma visão racional estrita.

Neste aspecto, o imperativo da interdisciplinaridade para a qualificação das tomadas de decisão deve ser mais bem referido como da transdisciplinaridade. Cabe ir além dos intercâmbios de conhecimentos e de métodos disciplinares que procuram dar completude às questões. Importa a consideração do não científico, a abertura das fronteiras para o que possa estar além das disciplinas, que é o não sabido exatamente, o  que se imagina e o que soa informal, inclusive com potencial de ser contraditório ao conhecimento que julgamos  bem estabelecido e compreendido.

É evidente que o paciente pretende do médico e de sua equipe a Tecnociência validada, o conhecimento atualizado, a capacitação que não derrapa na curva de aprendizagem, a atitude acolhedora, e não que ele professe Teologia.

Se é verdade que quem nada espera, nada teme, diante da doença, muita mudança se espera e, assim, muito se teme. A impossibilidade ética de prometer resultados deixa lacunas. É explicável que paciente, familiar e amigo desejam contribuir para o bom destino com a fé no desempenho das boas práticas pelo médico e com a crença no resultado pretendido. O presente pela fé e o futuro pela crença guardam analogia com o presente pelo diagnóstico e o futuro pela terapêutica.

Pela religiosidade, assim, paciente e circunstantes  exercem uma afinidade com o médico e uma autenticidade consigo próprio.  Há conforto em se sentir parte integrante contribuindo para que a força em que acredita esteja presente e atuante. Algo como pretender tornar visível o invisível.

Terapia adjuvante, diríamos. Embora não associada a dados e fatos que sejam  comumente reconhecidos de valor terapêutico pela ciência. Certamente, métodos para o reconhecimento de intervenção divina não devem ser aqueles para os quais o médico foi treinado para  valorizar.

Desta maneira, os bons resultados serão creditados, pelo médico, ao estado da arte da Medicina. Enquanto que a memória do paciente e/ou afins louvará que orações foram feitas, que promessas foram esquematizadas e que – porque não?- as primeiras foram atendidas e estas deverão ser pagas.

É verdade que o registro do paciente no prontuário traz a sua religião, é comum o caso ser apresentado com esta informação numa visita médica ou numa reunião no anfiteatro, mas o que se vê, em geral, é silêncio sobre este aspecto daí em diante.  Esporadicamente, há a menção à crença Testemunha de Jeová, mas, tão somente, quando há indicação para transfusão sanguínea, pois, afora isso, não costuma ocorrer nenhum conflito que os envolva.

O que eu desejo reforçar ao bioamigo é que o médico cuida do paciente, habitualmente, sem se preocupar se ele é religioso, ateu ou agnóstico. Não há rituais de prudência ou de  zelo específicos para cada um destes. Ao solicitar o consentimento livre e esclarecido para aplicar o procedimento, o médico informa  sobre Medicina e não aborda  religiosidade. Não consentimentos – afora o citado Testemunha de Jeová-  quando  rediscutidos focam nas consequências, na progressão natural da doença, nos desconfortos que não serão evitados, na perda eventual do timing para o sucesso terapêutico.

Não é praxe o médico brasileiro entrar numa discussão de cunho religioso na suposição que aspectos transcendentes sejam causa da negativa do paciente e, por isso,  mostrar-se hostil a esta fundamentação. No mínimo, não seria polido. Poderia  até ser entendido como desrespeito na dependência do  nível de religiosidade.

No lugar de tentativas de invalidação de pontos de vista, o recomendável é que o médico reconheça o contraditório e acione o botão do ajuste fino da relação médico-paciente, a fim de perceber se há ou não espaço para uma linguagem moral que dê  alternativa à dualidade proponho-não consinto.  Ou seja, que haja disposição para conseguir um  novo foco que distingue a  conciliação  perante complexidades, mas que se evite   manobras de coerção. É tarefa tempo-dependente, no sentido da experiência e das necessidades do caso.

A liberdade para fluidez de eventual mudança de opinião do paciente é essencial. Não há sentido num “decida-se já” em situações eletivas. É bem sabido o quanto fatores emocionais atingem o paciente numa primeiro processo de tomada de decisão, especialmente se inesperado. Haja vista a habitualidade da  segunda opinião por recusa da primeira opinião em nada diferente daquela ser agora  aceita porque o tempo fez a razão reassumir o comando da resolução.

A Bioética da Beira do leito, por coerência, endossa que aspectos religiosos  quaisquer que sejam as fontes geradoras de discussão, não devem comprometer a liberdade do médico de pensar criticamente e de modo independente sobre o sentido da vida,  sobre a teleologia das doenças, sobre o valor da Tecnociência no campo da Medicina, sobre porque há sofrimento e muito mais, inclusive sobre religião e sobre a Bioética em sua plataforma normativa. Evidentemente, o pensamento de cada médico sobre os mesmos não autoriza desrespeitos a leis e ao Código de Ética.

Em outras palavras, a Bioética da Beira do leito rejeita qualquer aprisionamento da mente do médico que possa se preocupar com desconexões entre  Razão, Ética (práticas), código moral (conjunto de valores propostos)  e moralidade dos comportamentos (realidade em relação aos códigos). A profissão favorece a nitidez das percepções da verdade do que foi, da esperança do que poderá ser, da satisfação com o sucesso e da decepção com o insucesso. O que o médico tem oportunidade de notar no seu cotidiano refletindo da sociedade é matéria-prima para reflexão sobre a conveniência de manutenções ou de revisões de práticas ligadas à Medicina com forte conotação religiosa. O início e a terminalidade da vida são ricos em temas desta natureza, como aborto,  células tronco embrionárias e eutanásia.

A Bioética da Beira do leito, se por um lado reconhece que a pessoa se torna cidadão antes de ser médico e, ipso facto, adquire o direito de externar os seus pontos de vista sobre qualquer ideologia, a religião, suas relações com o social, o cultural e o político,  por outro, entende que é indesejável a iniciativa pelo médico de incluir tais discussões conceituais  na  relação médico-paciente, sobretudo em momentos de tensão clínica e de conflitos no processo de tomada de decisão.

O respeito à diversidade de opinião do ser humano é valor pétreo da Bioética da Beira do leito. É qualidade para a representação do benefício e do malefício de modo individualizado. É prática que tenho visto crescer desde a minha formatura e que se acelera ultimamente. Graças a Deus!

 

 

 

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COMENTÁRIOS

2 respostas

  1. gostei bastante dos temas e especialmente dos conteúdos abordados pelo aprofundamento da análise crítica, além de pertinente, muito profunda.

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