O novo coronavírus por sua força etiopatogênica adquiriu um poder extraordinário e como todo poder, segundo Hannah Arendt (1906-1975), tem que ser defendido ou tomado. O compromisso com a vida e com a liberdade de ir e vir, e portanto a responsabilidade social, descarta, evidentemente, qualquer tipo de argumento em defesa deste poder infeccioso.
Reações treinadas para combate podem ser instantâneas, as não treinadas exigem tempo, inclusive para separar arbitrariedades de legitimidades em terrenos de areia movediça.
A mente reatora é dependente do interno e do externo ao indivíduo, especialmente quando se sobressai o instinto da sobrevivência. Um apelo ao bom senso se faz atemporal. 
Como se sabe, o narcisismo compensa as deficiências instintivas do homem em relação aos animais e o seu nível benigno, necessário para sustentar a auto-estima e comportamentos socialmente aceitos, e, assim, contribui para o equilíbrio interno da pessoa bem como para o seu relacionamento com o exterior. Recordemos a variedade de reações que testemunhamos ao início da pandemia entre nós pela falta de um norte e pode-se dizer que repetimos 1918, “modernizando” o quinino com outros fármacos.
A face domina as exposições pictóricas sobre o mito de Narciso. O nariz e a boca são representantes anatômicos da ligação exterior-interior e participam dos órgãos dos sentidos. A história da medicina registra que tapá-los para impedir conexões danosas em meio a epidemias foi medida para proteção dos médicos durante a peste negra do século XVII.
Mais recentemente, surgiu a máscara cirúrgica para colocar uma barreira entre um fluxo bilateral de contaminantes entre profissionais da saúde e pacientes. Ainda na década de 90 do século passado, havia controvérsias sobre o efeito de máscaras cirúrgicas na incidência de infecção pós-operatória. Uma pesquisa desenvolvida no Instituto Karolinska concluiu que máscaras devem ser usadas para proteger os profissionais da saúde de gotículas de sangue infectado do paciente e de infecções transmitidas por aerossóis, mas não para proteger o paciente operado por um time saudável https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/1853618/.
A máscara adquiriu status de acessório para ocasiões de atendimento na saúde, e, no presente momento, não devemos sair de casa sem ela, usando ou não, reproduzindo o que fazemos já há algum tempo com o aparelho celular. Inicialmente, o uso de máscaras- cirúrgicas- foi recomendado para uso por pessoas que apresentavam sintomas, cuidadores de paciente com Covid-19, além dos profissionais de saúde. Expandiu-se a recomendação. Parece que nos tornamos prisioneiros da máscara, disposição repetitiva que desafia o próprio desejo por ser uma heteronomia abafando -literalmente- a autonomia.
Quem está sem sua máscara sofre restrições e sansões em muitos locais. Eventuais intenções de pesquisas randomizadas sobre uso de máscara, na atual conjuntura, encontrarão nano poros em filtros de Comitês de Ética em pesquisa. Faz lembrar a crítica à medicina baseada em evidência pela convocação de adeptos da mesma para participarem de um estudo inglês randomizado sobre o valor do paraquedas -comparado a placebo- na prevenção de danos em situações de queda livre de grandes alturas.
O uso atual da máscara reforça que ações e reações assumem conotações simbólicas, adquirem importâncias que se estabelecem mais ou menos conscientes. Aliás, psicólogos entendem que o ser humano está habituado a usar máscaras… sociais para adaptações a certos tipos de ambientes, para retrucar a expectativas de certas pessoas, para pertencimentos. Máscara aparente sobre máscara inaparente, eis uma situação provocada pelo novo coronavírus.
Sob o ponto de vista prático, seria, então, máscara de reprovação do ambiente sobre máscara de aceitação no ambiente, em meio a consensos e dissensos, pretendendo o respeito por si próprio e pelos outros. Implica o papel da máscara da pandemia como intercessora entre fora de si e dentro de si, entre o individual e o coletivo, entre o malefício e o não malefício.
É interessante que o uso de máscara anti-contágio subentende que o vírus entra em contato com ela e, bloqueado em seu trajeto, nela tende a permanecer pelo que se sabe. Bioamigo, você já se “filmou” retirando a sua máscara e a manipulando pós-uso- até durante o uso? O contato manual com o vírus se afigura bem plausível. E, como se diz, a mão que defende é mesma que ataca. Aliás, um argumento para desestimular o uso por crianças menores, afinal não há nenhum efeito bate na máscara-volta para o ambiente reconhecido. Como se vê, falar sobre certos aspectos envolvendo a Covid-19 é como buraco, quando mais dele extraímos conteúdo, mais distante da base ficamos.
A Bioética da Beira do leito incorporou o sentido da máscara alinhado aos princípios éticos básicos do respeito pelas pessoas e da beneficência/não maleficência. A máscara da pandemia, cuja simplicidade e habitualidade escondem a criatividade do seu desenvolvimento, representa uma oportunidade de liberdade. De certa forma, resgata um nível de autonomia e protege quem a tem diminuída. Seu significado físico foi introjetado – e valorizado- pela mente humana, assim expressando seu nível de adaptabilidade.
A máscara guarda um contexto de analogia à automedicação, por isso, a Bioética da Beira do leito enfatiza a necessidade da preocupação com adversidades associadas ao uso. Desta maneira, entende que todos devem conhecer uma “bula” calcada na produzida pela Organização Pan-Americana de Saúde. 
