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854- Geometria na beira do leito (Parte 2)

O paciente chega ao médico com suas queixas. Tradicionalmente, o médico recebe-o polarizado para desenvolver o melhor da medicina aplicável e numa atitude empática. Foco no bem do paciente com a lente da beneficência.
Como ficou bem claro a partir do século XX que o paciente deve ser visto como um agente moral livre, o médico será, o que na prática significa que  ele terá que analisar ajustes ao que já definiu como o mais recomendado, caso o paciente manifeste contraposições por desejos, preferências, objetivos e valores. Destaca-se, pois, a autonomia.
A conexão que se estabelece entre médico e paciente pode ser figurada como uma reta que admite uma vertente heteronômica vertical – uma ordem de cima para baixo- e uma vertente autonômica horizontal- mesmo plano de valorização da moral.
Uma representação inicial da reta é uma grande distância vertical entre a extremidade dada pelo desnível de conhecimentos e habilidades associado ao ainda desconhecimento da doença na mente do médico e a extremidade dada pelas anormalidades no corpo do paciente. É um início apenas com a história de cada um – do profissionalismo do médico e da pessoa doente. A partir de então, espera-se uma movimentação entre as extremidades energizada por aspectos tecnocientíficos e por atitudes.
Observando a reta sob o ângulo da beneficência e de um tão somente comunicado ao paciente sobre o que vai sendo identificado, ela persiste na vertical mas encurta-se, ou seja, a mente do médico e o corpo do paciente vão progressivamente chegando a um ponto comum onde o diagnóstico é firmado e uma estratégia terapêutica é planejada. É o modelo da “ordem médica não deve ser discutida, ela deve ser cumprida”.
Recentemente, revendo nossos códigos de ética médica surpreendi-me que entrara na faculdade de medicina (1962) com a vigência de  Cabe exclusivamente ao médico o direito de escolher o tratamento para seu doente, orientando-se sempre pelo principio do primum non nocere, devendo preferir, sempre que possível, o tratamento médico ao cirúrgico e, neste, as operações reparadoras às mutiladoras (artigo 48º do Código válido entre 1953 e 1965) e me formei (1967) sob nova tendência expressa no código que valeu entre 1965 e 1988: O médico, salvo o caso de ‘iminente perigo de vida ”, não praticará intervenção cirúrgica sem o prévio consentimento tácito ou explicito do paciente, e tratando-se de menor ou de incapaz, de seu representante legal.  
Portanto, ao receber o número do CRM, estava autorizado a observar a reta sob o ângulo do direito à autonomia pelo paciente, mesmo alguns anos antes do Relatório Belmont que fixou os princípios da Bioética. A bem da verdade, estes aspectos do vínculo humano não estavam explícitos.
A verticalidade inicial focada no corpo doente ao sofrer a influência da mente do paciente que discute e pode provocar ajustes em cada etapa da investigação diagnósticaRetas1111 horizontaliza-se em função do aspecto participativo e  se encurta. É quando beneficência e autonomia desafiam o potencial de tensões na beira do leito. Há pacientes que fecham os olhos e assim manifestam obdeiência cega e há pacientes que insistem em alta a pedido.

Cada caso terá no decorrer do atendimento momentos mais verticalizados e mais horizontalizados, mais distanciamentos ou mais aproximações das extremidades e a movimentação “geométrica” – uma transversalidade entre beneficência e autonomia, uma integração frente às necessidades de saúde e valores do paciente- é uma grande mudança ética do século XX.

Supondo, agora, que o momento de o paciente opinar sobre o estado da arte da medicina que lhe interessa materialize-se como um não consentimento do paciente para a aplicação do recomendado, a reta horizontalizada  passa a vertical e com distanciamento entre as extremidades. Se no início do atendimento era uma verticalidade distante da mente do médico e do corpo do paciente ainda inexplorado, agora, pelo não consentimento, é uma verticalidade com distanciamento entre a mente do paciente e a mente do médico.

Esta reorganização tem força para mobilizar o paternalismo brando e reforçar que se trata de um instrumento ético. Ele faz o médico vivenciar  o respeito à mensagem do paciente e motiva movimentos de revisão da situação, reconsideração das estratégias e estruturação de novas possibilidades em função da resposta dissociada do mais recomendado. Configura-se, então, uma situação do paradoxo de sorites, ou seja, o quanto ajustes tornam-se menos ainda na categoria de recomendável.

O paternalismo brando contrapõe-se a uma indiferença profissional ao Não do paciente, permite mais uma chance para a aplicação da disponibilidade tecnocientífica qualificada, valoriza a alocação de recursos já dispendida na investigação e contribui para reverter a movimentação da verticalidade distante entre as mentes do médico e do paciente para uma horizontalidade com proximidade das mentes numa reciprocidade de ser ouvido e de ouvinte. A Bioética da Beira do leito recomenda!

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