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722- Desejo, esperança e fé (Parte 2)

O distanciamento médico-paciente no processo de tomada de decisão foi se encurtando ao final do século XX a reboque de mais medicina, cidadania e informação. A reconfiguração dos limiares da conexão médico-paciente acontecida nas últimas décadas no Brasil tem raízes endógenas bem brasileiras e exógenas de culturas distintas via literatura. A Bioética contribui como catalizadora.

Desenvolveu-se  uma revisão de mentalidade na beira do leito sob atenção da Bioética com o efetivo reconhecimento do paciente como agente moral alinhado ao respeito profissional a controvérsias sobre benefícios e malefícios. Resultou a voz de fato influente do paciente ecoando consentimento ou não consentimento nos contrafortes do ecossistema da beira do leito. Uma jornada de meio século!

Há uma curva de aprendizado em andamento sobre como lidar etica, moral e legalmente com o não consentimento do paciente na beira do leito brasileira. A aceleração modesta resulta da frequência minoritária do não consentimento definitivo pelo paciente.

Aspecto capital do processo pedagógico é cuidar para não desenquadrar a decisão final do paciente do respeito ao direito à autonomia. Por isso, deve-se evitar ao máximo a incoerência de encaminhamento do conflito gerado no entorno da voz ativa do paciente para uma instância de atuação heteronômica. Ou seja, é preciso acreditar no valor do diálogo médico-paciente esclarecedor e conciliador.

FSL é uma paciente com 52 anos de idade, meticulosa, exageradamente preocupada com a saúde que se atribui aos pais terem falecido jovens, ambos por comprovados efeitos adversos de fármacos. Ela vive sob traços de hipocondria e com fixação em males da medicina. FSL faz coleção eletrônica de bulas de medicamentos com destaque para os efeitos adversos.

BulaA paciente me procurou com queixas específicas e cheguei ao diagnóstico. Havia uma doença real que exigia intervenções terapêuticas e preventivas. Ao final dos meus esclarecimentos sobre planejamento da conduta, FSL direcionou o diálogo para as chances de adversidades, enxergando-as com lente de aumento. Os benefícios cogitados, simplesmente, se evaporaram da sua mente.

Entendi seus argumentos em função da marcante precedência familiar e tentei escapar da rota de colisão com argumentação e bom-senso. Foi infrutífero. FSL contestou-me que pouca chance não era igual a nenhuma chance, os antecedentes dos pais confirmavam. A paciente revelou-se excelente candidata ao efeito nocebo. FSL sumiu. Até disparei um WhatsApp indagativo algunis dias depois, mas, creio que nem foi lido.

O caso reforçou-me que a voz ativa do paciente carrega o potencial de duplicar ilusões, ou seja, as adversidades aconteceriam invariavelmente e se realizariam de modo dominante e impeditivo aos benefícios.

Felizmente, o que se observa na beira do leito em geral é o predomínio da expectativa da beneficência pela sequência: o desejo do paciente (no presente) pelo benefício movimenta-se pelos esclarecimentos, passa a ser vontade, transpõe-se para o futuro como esperança e retorna para o presente como fé (benefício já visualizado como realizado).  Em tempo, crença é esperar que vai acontecer e fé é já dar antecipação à realização.

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