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599- Procusto de roupa nova (Parte 2)

A invasão de máquinas com versatilidade para multitarefas úteis e eficazes na beira do leito não deve, contudo, desgostar o titã Atlas e provocar a desumanização. Difícil, pois a necessidade de resgate da humanização já vem sendo reconhecida há décadas como subproduto do progresso tecnocientífico na medicina. A beira do leito sofre da fragmentação entre razão e emoção que absorve e emite lícitos e ilícitos éticos. Aliás, se alguém neste ponto  da leitura indagar se a eventual dissolução da anamnese e do exame físico tradicionais é ilícito sobre algum artigo do Código de Ética Médica vigente, a resposta é negativa, mas, já foi positiva: Artigo 32º- Não é permitido ao médico prescrever tratamento sem exame direto do paciente (Código de Ética da Associação Médica Brasileira 1953-1965).

Atribui-se ao estadunidense Norbert Wiener (1984-1964) o início da Teoria Cibernética que admitia a criação de sistemas semelhantes aos do ser humano e que logo incluiu a noção que sistemas adquirem forte relação com o próprio comportamento, ou seja, a continuidade é sensível e mutável à sucessão das práticas, algo como o dito por Aristóteles (384ac-322ac): É fazendo que se aprende a fazer aquilo que se deve aprender a fazer. 

A Bioética nasceu e se desenvolve na apreciação de comportamentos humanos como os observados na beira do leito. Nos tempos de nenhuma máquina era uma medicina “filosófica”, num amanhã de só máquina que medicina será? Algo como uma viagem num automóvel sem condutor que chega ao destino com mais segurança? Algo como um botão no computador que uma vez apertado perante um defeito gera após pouco tempo a mensagem reparado com sucesso?

A Bioética tem grande responsabilidade no acompanhamento da aceleração “maquinista” da beira do leito isenta de uma premissa de iconoclasta de inovações, mas comprometida com a firme intenção de preservação da noção que medicina conecta seres humanos. Em outras palavras, a valorização da interpessoalidade.

A anamnese e o exame físico reforçam o presencial da interpessoalidade e suas lógicas são essenciais para qualificar a beira do leito sem nenhuma necessidade de demonizar o uso subsequente de máquinas. Ambos exigem distâncias próximas entre seres humanos, pessoais e íntimas, assim promovendo a humanização quanto ao escondido (revelação pró-cura), ao sigiloso (revelação pró- globalização do saber) e ao confidencial (preservação do sigilo profissional).

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Crédito: https://www.malagahoy.es/opinion/tribuna/sindrome-Procusto_0_1217278906.html

Recordemos alguns trechos da justificativa que Aldous Huxley (1894-1963) fez duas décadas depois do lançamento de O Admirável Mundo Novo (1932), aplicáveis ao contexto da contemporaneidade da beira do leito e à preocupação com a humanização da medicina: 1- Pelo rompimento de padrões existentes da vida humana e o surgimento dos novos arriscam-se ao inumano teríamos um Procusto de roupa nova- vale dizer, o leito seria dimensionado de tal forma pelas máquinas  que os pacientes serão esticados ou encolhidos compulsoriamente para se adaptar ao modo uniforme; 2- A atuação de uma cortina  de omissão para fazer amar a servidão- vale dizer a interposição de uma cortina entre a tecnociência e o ser humano tecida pelo silêncio e com a força do ferro, porém “cortina de silício” que faz desaparecer o valor do Atlas anamnese-exame físico.

Há fatos demonstrativos que o percurso humano da beira do leito sofre transformações radicias pretendendo maior iluminação das (ainda)muitas trevas do diagnóstico, tratamento e prevenção, ganho de racionalização de tarefas e mais eficiente distribuição do tempo. Estaria a medicina na qual os médicos atuantes se formaram já definitivamente comprometida para ser impulsionada pela inteligência artificial? Da mesma forma que o nosso dia-a-dia está hipnotizado pela simbiose com o celular?

Na perspectiva que a escalada fértil em novidades já está em curso e não tem volta, a Bioética vislumbra muito trabalho pois não faltarão tópicos de questionamentos, por exemplo, o quanto o progresso estaria sendo um regresso!

 

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