PUBLICAÇÕES DESDE 2014

545- Nuvens sobre os órgãos dos sentidos

Participei, recentemente, de um Painel no XVI Congresso da Sociedade Brasileira de Informática em Saúde. Entendi que fui convidado para expor aspectos do sigilo profissional em Medicina de interesse da Proteção de dados pessoais e do Marco Civil da Internet no Brasil. Dei ênfase ao potencial de contraposição entre o desejo de acolhimento ao paciente e o máximo respeito ao sigilo profissional. Considerei estes dois atributos do profissionalismo sob a crescente influência heteronômica observada na beira do leito contemporânea brasileira. Destaquei a força clínica das evidências contida em diretrizes clínicas e a potência comunicativa da disponibilidade digital na composição da alta hierarquia dos impactos transformadores contemporâneos do exercício profissional. A mensagem final foi sobre o valor da judiciosa seleção da emissão de respostas do médico ao paciente e do comedimento de iniciativas via mídias sociais como fator de preservação do sigilo profissional. De modo geral, pretendi captar o sentido de nuvem como expressão da computação em servidores disponíveis na Internet e alinhar o “bom ou o mau tempo ético” da conexão médico-paciente a uma questão de “cirrus” ou “cumulus” formados pelo próprio médico.

Perante a platéia multiprofissional numerosa e atenta, endossei o ponto de vista que a beira do leito renova-se positivamente com novas interfaces por inclusões tecnológicas no campo da informática. São revitalizações que ampliam a multitarefa atávica da beira do leito. Ao mesmo tempo, assinalei que todo método atuante, seja lá de que natureza for, causa algum tipo de dano ao paciente – e ipso facto ressoa no médico-. Em razão disto, torna-se imperioso que a revolução digital de emissão, recepção e armazenamento de informações sofra ajustes éticos e legais em prol da convivência da tradição com o referido progresso. Zonas de conforto nos cenários de continuidade do exercício da Medicina são metas tão perseguidas quanto efêmeras ao serem, porventura, alcançadas.

Códigos, normas e leis de interesse da Medicina estão sempre em recomeços em função de giros de pensamentos sobre direitos e deveres a reboque do mundo real de confrontos entre benefícios e adversidades no ecossistema da beira do leito. Aconteceram quando houve a introdução do estetoscópio (responsabilidade pela disponibilidade de métodos fabricados), radiologia (cautela com danos) e  transplante de órgãos (conceito de morte cerebral). Não seria diferente com a incorporação em avalanche  da internet, computação e mídias sociais.

Como nunca me afastei do ecossistema da beira do leito desde a graduação, sempre uma beira do leito de natureza acadêmica que preserva de reducionismos, me vi parte atuante da sua informatização. Lembro-me do primeiro computador instalado no InCor para uso coletivo. Ele foi posto num local isolado e somente poucos se aventuraram a testar a usabilidade- fui um dos pioneiros,  cooptado pelo fascínio da nova forma de expressão. Aos poucos, a máquina desbravadora foi reconhecida pelos colegas como instrumento útil para agilizar o tratamento de informações alinhadas com o objetivo de bem atender às necessidades de saúde do paciente.  O tal do sistema vingou e transformou irreversivelmente a informação no ambiente hospitalar.

Vivemos um momento de ansiedade com muitas dúvidas e tentativas de explicações acerca de uma tremenda transformação da Medicina -inclusão na beira do leito de termos como Medicina de precisão, computação avançada, big data, robotização, inteligência artificial. Uma imagem fantasiosa do paciente entrar numa máquina e sair “pronto” no diagnóstico completo, prescrição terapêutica, maximização do prognóstico favorável e alertas preventivos serve de pano de fundo para anúncios de definhamento – morte mesmo- da propedêutica física guiada pela inteligência natural e exaltações que robustecem a parafernália ligada à inteligência artificial.

Pensamentos originalmente relacionados à ficção científica, antecipações do futuro sobre o poder das máquinas que já estão aqui e agora, sugerem que se deixe de lutar pelo passado tradicional da Medicina, pois as armas serão obsoletas. É ideia impossível para quem aprendeu o inestimável valor das distâncias íntima (15 cm a 45 cm) e pessoal (45 cm a 75 cm) da interação humana no ecossistema da beira do leito e as entendeu como ocupação para uma vida profissional inteira.

A intimidade da beira do leito assim como exige o sigilo profissional referente ao paciente, requer a transparência sobre os métodos utilizados. Neste contexto, a Bioética da Beira do leito é fórum disposto a uma permanente reavaliação do progresso tecnológico tendo como ponto de referência os métodos antigos fundamentais. Entre ideias conflitantes de acelerações e de retrocessos, eclodem preocupações como a coisificação do paciente pelo tecnicismo. Ver o outro como não-pessoa perturba a reciprocidade que caracteriza o exercício ético da Medicina. Exemplo da inquietude com uma desconexão médico-paciente porque afastada da pessoalidade é o quanto a ascensão do laudo de exames da condição de complemento para determinante principal de condutas afasta-se das boas práticas. Recorde-se que é direito III do médico apontar falhas em normas, contratos e práticas internas das instituições em que trabalhe quando as julgar indignas do exercício da profissão ou prejudiciais a si mesmo, ao paciente ou a terceiros (Código de Ética Médica vigente). É tema onda nem fixações nostálgicas, nem entusiasmos fantasiosos, qualificam o passado ou o futuro. Olhar para trás em Medicina não nos transforma em estátuas.

O ser humano desenvolveu os órgãos dos sentidos e cada um aplica a sua maneira pessoal com objetivos variáveis, de modo que tato, audição, visão, olfato e gustação desenvolveram-se multi-uso. Entretanto, o momento profissional com seu viés coletivo veta radicalizações como a eliminação do uso na conexão médico-paciente direta para os incorporar tão somente no uso de aparelhos, pretendendo melhor emprego do tempo no ecossistema da beira do leito. A Bioética da Beira do leito  considera que inspeção, palpação, percussão, ausculta são métodos tradicionais do exame físico articulados com os órgãos dos sentidos que conectam o médico ao paciente comandados pela mais alta tecnologia que se conhece, a do cérebro humano.

Atualmente, o quarteto é utilizado para a conexão com computadores e smartphones. Desassossega um nível de competição, ou seja a possibilidade do desvio teleguiado da atenção ao paciente ajuizável como anti-ético. Poucos são imunes a este “vírus eletrônico” que infecta a concentração mental.  Registre-se, historicamente, que, num sentido inverso o desenvolvimento tecnológico contribuiu para um segundo plano do uso de dois órgãos dos sentidos, o olfato (“o cheiro hepático”) e a gustação ( amostra da urina na detecção do diabete) pelo médico na beira do leito do leito. Restou o trio da visão, audição e tato, que sustentaram expressões clássicas da atuação do médico como olhar de relance, ser todo ouvidos, mão de fada.

O paciente chama a atenção por meios sonoros pela queixa, eventualmente por algum ruído como a tosse, o espirro e o estridor laríngeo. Instrumentos eletrônicos cobram atenção por meio de ruídos programados, inclusive convencionados. Estes são alertas que causam efeito semelhante ao do toque do telefone fixo, ou seja, tendem a provocar uma prioridade de atendimento. Desta maneira, criam-se possibilidades para a ocorrência na beira do leito do deslocamento da atenção preferencial para o aparelho. Curiosamente, empregam-se os mesmos métodos do exame físico, a inspeção – por exemplo, do tipo de comunicação recebida-, a palpação – por exemplo, para o enquadramento para leitura, a percussão – por exemplo, do teclado visando emitir respostas- e  a ausculta- por exemplo, de mensagem de voz. Também não se observa nem gustação, nem olfato – por enquanto…

Uma boa parte desta atividade é feita com a mão, este valioso instrumento propedêutico da tradição da Medicina – que está sob risco de extinção-, mais especificamente, com as pontas do dedos.  Enquanto que estas costumam ser obedientes a uma rotina de exame do paciente e raciocínio clínico, o mundo atual do ecossistema da beira do leito impactado pelas mídias sociais as absorveu  de modo altamente energizadas e com chances de “desobediência” do cérebro profissional e ético.

As pontas dos dedos viraram enfants terribles dominados pelo imediatismo de uma comunicação fácil, amiga do ego e transgressora do superego. Instrumentos da “verdade líquida”, elas atingiram o ponto de ser um prazer da pós-modernidade, viciante e imune a críticas. Desligue o celular é apelo cada vez menos atendidos, pois não se desliga do celular, conforma-se em deixá-lo, no máximo no modo avião.

Importante a destacar que elas pertencem a um médico cuja responsabilidade profissional é individual e exigente do respeito a valores e a regras, obrigado a um alinhamento com a moralidade e a ética de classe. O equilíbrio está a caminho. A Bioética da Beira do leito dispõe-se a colaborar tornar a nuvem menos nebulosa.

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