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471- Livre para escolher, submisso para encolher

Ética refere-se ao processo de tomar decisões em relação à apreciação do que é certo ou do que é errado na circunstância. Na beira do leito, pode-se dizer que o paciente tem mais liberdade de escolha que o médico. Pois esta liberdade de escolha não é exatamente escolher entre duas possibilidades boas, mas entre a melhor e a pior em relação à saúde  sob cuidado.

O médico tem que seguir o estado da arte, considerar métodos e construir estratégias diagnósticas, terapêuticas e preventivas afinadas com os preceitos da Medicina disponível. O paciente pode, ao contrário, recusar a se submeter ao recomendado pelo médico, com evidente malefício para si próprio. Algo como suicidar-se não é crime, induzir ao suicídio é.

O médico precisa exercer o compromisso com a racionalidade e o paciente tem direito a decisões emocionais. Assim, considerando o melhor interesse ou o bom suficiente segundo o paciente, a integração entre beneficência, maleficência e autonomia admite combinações de adjetivações da escolha em sentidos superpostos ou opostos na conexão médico-paciente – certo e bom para ambos (amplo consentimento), certo para o médico e mau para o paciente (não consentimento pelo paciente), bom para o paciente e errado para o médico (não auto-consentimento pelo médico).

É comum jovens indagarem se não aplicar “o certo”, “o bom” em face de uma recusa do paciente não representaria um ato de negligência, já que ética subentende evitação do “mau” e do “errado” – “… Eu me senti como tendo feito um orçamento sem compromisso. Ninguém se preocupou com o custo do mesmo… Ele não era um investimento, era despesa mesmo… Foi uma experiência cruel”.

Esclareço que a visão de responsabilidade profissional não deve ser sustentada pelo afastamento de acusações ou de punições por possibilidades interpretativas de terceiros, mas ela deve ser centrada na significação de “estou ciente de ter feito desta maneira”. Em outras palavras, a conscientização da convicção na decisão. – fiz, registrei, assinei, carimbei com tinta indelével.  Em decisões complexas, cabe exclamar Alea jacta est considerando a mesma possibilidade de imprudência que teve o romano Julio Cesar ao atravessar o Rubicão.  Do mesmo modo, pelo ângulo de visão desde o paciente, ele deve ter a responsabilidade de estar ciente de ter se recusado a dar o consentimento e, ademais, qualquer censura por terceiros é meramente opinativa em função das circunstâncias individuais.

Médico e paciente estão juntos (pleonasmo) para a seleção de meios como certo/errado, bom/mau e como é sempre o ato concreto que exige a decisão, definir-se bem e mal conforme os princípios da beneficência e da não maleficência pode colidir com uma contramão da autonomia, trafegando em maior intensidade.  Um exemplo é aquele processo de tomada de decisão em roda dentada devido a indecisões do paciente. Por isso, a aplicação do alicerce ético da prudência pelo médico durante o reconhecimento do melhor método  para satisfazer as necessidades de saúde do paciente por mais equilibrada que possa vir a ser na roda viva da Medicina, ainda carece de uma etapa subsequente, o equilíbrio com o direito à autonomia por parte do paciente. Felizmente, este esforço improdutivo é pouco frequente, mas cada um deles é frustrante profissionalmente para quem não preza a indiferença.

Pretendo que minhas explicações à indagação do jovem faça com que ele entenda o significado de liberdade de escolha profissional numa situação onde a previsibilidade sobre a aplicação é complexa. Ele representa não somente estar livre para orientar dentro do quadradinho ético, como também estar livre para o oposto – não fazer. O denominador comum é a vontade, a do médico em aplicar e a do paciente em não se submeter. Na Medicina contemporânea em meio à evolução social, a vontade do paciente dispõe de mais força moral.

A Bioética interessa-se pelo motivo que faz o jovem ficar em dúvida se está sendo negligente atendendo a uma vontade discordante do paciente. Considerar que o paciente está errado ou fazendo má escolha, assim sentindo o profissionalismo ferido, parece destacar que o treinamento formativo com centrismo tecnocientífico não se propõe a concessões que contrariem a ciência.

O renascimento do valor hibernado da humanização, talvez deformado durante a Faculdade e Residência Médica, tem tudo a ver com o discernimento sobre a inclusão do diálogo no significado de ser médico, vale dizer, expressão da maturidade profissional. De fato, lidar com o não consentimento do paciente é oportunidade para apreender que a “desobediência” do outro está longe de ser um “pecado” dele, ela é a mensageira que provoca o desenvolvimento das capacidades de relacionamento e da auto-imagem.

Vislumbremos aquele médico antigo pintado em várias telas famosas, pensativo ao lado do paciente, solidário, humano, tendo disponível o arsenal de métodos beneficentes da Medicina contemporânea. A Bioética precisa colaborar para que haja o equilíbrio ciência -humanismo, pois, infelizmente, ocupar-se com o imenso arsenal que lhe dá mais segurança porque nele imergiu mais profundamente no decorrer da formação profissional, parece não estar deixando muito tempo para contemplar o humano da conexão médico-paciente.

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