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1202- Trans e pós-humanismo na beira do leito. Uma leitura com o apoio da Bioética (Parte 3)

II

Uma informação preliminar 

As verdades são entendidas facilmente uma vez descobertas. O ponto crítico é descobri-las, Galileo Galilei (1554- 1642)

 

Tudo na Terra – que é nossa única possibilidade cósmica… por enquanto e portanto motivo de responsabilidades – depende do fluxo da informação. Assim é no dia-a-dia não profissional, na integração entre anamnese, exame físico e exame complementar, na alternância sístole/diástole do coração sob o comando do nó sinusal. A respiração humana normal alinhada ao ciclo do oxigênio na natureza acontece mediante troca de informações sem participação da nossa percepção, o que nos ensina que movimentos de informação vitais, biológicos ou não, podem acontecer de modo despercebido.

A globalização do “cérebro eletrônico”, o primeiro nome do computador e o mais integrativo ao ser humano, fez conscientizar o valor de parcerias do humano com o “não-humano próximo do humano” para beneficiar e facilitar a obtenção de velhos e novos sentidos na vida pois promove o desenvolvimento de  conexões – concordantes ou discordantes- entre a informação, o conhecimento, o entendimento, a imaginação, a analogia, a razão e a sensibilidade. Ampliaram-se maneiras de manejo do campo especulativo que evolui das ideias para realidades.  O nunca pensado, o já pensado armazenado quer adormecido quer restrito de repente ganharam visibilidade expansiva.

Num contexto de por-vir, de diferenciação, de reatualização, de liberação a submissões do antigo, de estímulo criativo tanto pelas necessidades quanto pelo problemático, de imperativo por reequilíbrios, na década de 90 do século passado, a antropologista ligada à medicina Donna Haraway (nascida em 1944) publicou o Manifesto do Ciborgue onde deixou claro que a medicina já exibia dependência de computadores e outras máquinas, tornando médico e paciente um híbrido de organismo e máquina (em amplo sentido) e vivendo entre fato e ficção… quem sabe, até mesmo vivenciando alucinações… ou delírios.

A participação da inteligência artificial, de um verdadeiro “exocórtex” (termo cunhado por Sennay Ghebreab, nascido em 1973) passou a modelar e mediar tomadas de decisão no ecossistema da beira do leito. Recentemente, o isolamento de sobrevivência (“quarentena”) imposto durante a pandemia de Covid-19 constituiu-se num “laboratório vivo” que testemunhou a aceleração da integração entre ser humano e máquina por um misto de necessidades de aproximações (cognitivas) e de distanciamentos (físicos). O mundo ciborgou!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Atualmente, não há como não considerar a metáfora: somos ciborgues. Há uma realidade social de dependência do artificial dentro de nossos corpos (desfibrilador cardíaco implantado, por exemplo, que atua por decisão própria, sem interferência do paciente ou de terceiros, ou numa concessão de concepção além do “ativo smart”, do de fato cibernético, que admite uma “passiva” prótese de joelho) e fora deles (computação, por exemplo). O trio espermatozoide, óvulo e genes ganhou forte concorrência de criação.

Prevê-se uma acentuação explosiva e desafiadora, um futuro distópico sem precedentes com fortes impactos nos direitos humanos – abusos “algorítmicos” em relação à privacidade, à não-discriminação, por exemplo, pois distorções e erros decorrentes de como acontecerão os aprendizados de máquina não podem ser subestimados e intenções de felicidade podem resultar tóxicas.

Organismos internacionais preocupam-se com direitos do ciborgue no século XXI, razão suficiente para nos conscientizarmos via Bioética da responsabilidade com uma atenção inclusiva, multiprofissional e transdisciplinar às transformações previstas, para acompanharmos de perto tudo que se refere a futuras modelagens da saúde pela tecnologia disruptiva, e sempre atentos às possíveis repercussões em nossas peculiaridades socioculturais em geral, no sistema de saúde em particular e, essencialmente, nas vulnerabilidades do ciborgue. As realidades do ciborgue intimamente alinhadas à neurociência e à tecnologia pressupõem uma multiplicidade de cenários, inclusive já frequentados como no campo da neurologia e da cardiologia.

Vale um exercício em conformidade com a Bioética: haverá um direito do ciborgue-paciente ao princípio da autonomia para escolher e consentir com a incorporação ou de órgãos humanos, ou de órgãos de outros animais (xenoimplantes) ou de tecnologias cibernéticas implantáveis pelo Dr. Ciborgue? Inclusive, o quanto a predominante sinergia ser humano-máquina poderá impactar em subjetividades: Sou um humano ou sou uma máquina? Sou um profissional humano ou sou uma máquina atuante? Cuido de um ser humano ou de uma máquina? Questões que modernizam a aristotélica ideia que nosso comportamento moral é mais dependente e reativo de habilidades pessoais e sociais.

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