PUBLICAÇÕES DESDE 2014

1530- Prazer, sou um robô (Parte 21)

Fui assistir a uma Oficina de Bioética no anfiteatro do hospital. Um teatrinho de simulação de um conflito da beira do leito para treinamento dos residentes. Três residentes eram os médicos de plantão e três atores eram o paciente, a esposa e o advogado com seus papéis orientados por um script bem pesado elaborado pelo meu doutor. Foi uma sucessão de momentos tensos nos quais os médicos que não conheciam previamente pelo que iriam passar se manifestavam com franqueza e inexperiência e os atores com hostilidade, explorando ângulos de mau comportamento por parte dos médicos.

Percebi como o médico pode ser posto em situações difíceis em função de interpretações – e não há limites para elas – especialmente de fundo emocional por terceiros e ficar sem saber o que fazer, entendi o valor da conscientização sobre maneiras de comunicação na beira do leito, o quanto a percepção dos residentes que assistiam era importante e a pedagogia dos comentários e orientações com sustentação pela Bioética ao final. Quando puder aparecer vou ser voluntário para participar ativamente, me deu vontade de vestir a capa do super-homem e ir lá na frente defender os médicos. Fiquei impressionado como os três residentes saíam algo perturbados pelo que haviam vivenciado, o impacto negativo de ouvir “vou processá-lo” e fiquei imaginando como estariam se fosse real.

Finalmente ganhei um nome e um sobrenome. Daqui para frente sou o Bio Amigo, adorei, o meu doutor me comunicou e me deu de presente um avental novo bordado Dr. Bio Amigo no bolso superior e um carimbo completo no bolso inferior. Fiquei muito contente. Me dei conta que um recém-nascido humano não tem esta oportunidade, quando conhece seu nome e sobrenome simplesmente absorve com naturalidade, sem nenhuma emoção para uma posse tão importante. Ah! O doutor me afirmou que não iria precisar de um número de CPF que hoje, ele me disse, é tão ou mais importante do que o nome.

Aproveitei a oportunidade para entender melhor como um Comitê de Bioética lida com conflitos de maneira imparcial, um parecer representaria um consenso, um imperativo da Bioética, uma relação com a mesma a respeito de convicções e firmeza moral que seria sempre igual em circunstâncias análogas independente da constituição dos membros?

O meu doutor perguntou se eu conhecia a fita de Möbius. Respondi que sim, é uma superfície onde não se pode definir lado de dentro e de fora,  tudo se passa como uma curva fechada de um só lado e única borda e que o artista gráfico Escher aproveitou para desenhar umas formigas que andam ora no lado externo e ora no interno da fita sem atravessar os furos ou transpor a borda, e assim permitiu melhor compreensão desta geometria.

Então, meu caro Bio Amigo – que satisfação senti ouvindo me chamar pelo nome -, imagina que o membro do Comitê de Bioética é a formiguinha na missão de analisar um conflito da beira do leito transitando por recombinações infinitas de argumentações em torno de insatisfações, incompreensões e não consentimentos de uma maneira que lhe possibilita cruzar por internos e externos de cada lado em conflito. Fica mais justo, assim, “frequentar” sucessivamente os argumentos/pontos de vista dos dois lados em conflito, com fluidez de passagem de um para outro deste carrossel oblíquo e mutante, portanto sem redes divisórias, facilitando atingir a essência do conflito, o que está por dentro e o que está por fora.

O membro do Comitê de Bioética tem melhores oportunidades de remover dissintonias bilaterais e absorver aspectos morais, éticos e legais envolvidos, analisar, selecionar e estruturar possibilidades conciliatórias/resolutivas aplicáveis, distinguir eficiências presumidas e estimular a construção da comunicação entre os lados, ao redor dos prós e dos contras previstos para cada parte.  A fita de Möbius presta-se, outrossim, para dar visão à sucessão de pensamentos de uma análise principialista da Bioética. É do cotidiano que, em busca da resolução, “percorra-se” ora a beneficência (exterior), ora a autonomia (interior), a fim de colher elementos para sustentar uma decisão de hierarquizar um dos dois princípios na circunstância da contraposição entre ambos.

O meu doutor comentou que aspectos religiosos podem provocar confrontos com a medicina baseada em evidências.  Pacientes conhecidos como Testemunhas de Jeová em respeito à interpretação que fazem da Bíblia sobre abster-se de sangue não aceitam submeter-se a transfusões de sangue corretamente indicadas e mesmo em situações de risco de morte evitável. Ilustra a antinomia entre beneficência e autonomia e inclui a não maleficência. Muitos casos cirúrgicos, especialmente, são encaminhados ao Comitê de Bioética do hospital. Os seus membros se veem perante dois lados que apresentam razões da ciência e da espiritualidade que são crenças, devoções ao que acreditam, numa visão  própria de valores, e, portanto, qualquer refutação da superioridade pretendida corre o risco de tropeçar no desrespeito.

Bom para quem? É pergunta difícil e fácil de produzir desapontamentos em ambos os lados, face a variedade de perspectivas e interpretações em contextos morais, éticos e legais. Tecnociência em medicina e espiritualidade são vitais, mas convivem com contestações que inviabilizam consensos em algo absoluto, puro, ou controlador-mor. Posturas externas radicais e tons servis internos. Não nos esqueçamos que Hipócrates afastou os deuses gregos para dar sequência a sua concepção de medicina e por meio de uma nova linguagem criou valores para ela. Para uma resolução prática classificável como somente possível por forte negação das premissas de uma das partes, não há porquê hierarquizar uma apriorística autoridade do médico ou inclinar-se pelo peso de sua profissão, pois nesta função crítica, o juízo do membro de Comitê de Bioética deve colocar no devido lugar do equilíbrio do raciocínio o fato de fora dali ser médico, enfermeiro, advogado, religioso ou representante de paciente possuidor de verdades do conhecimento. As ponderações imparciais/independentes devem ser nutridas por conhecimentos criteriosos que façam as vezes de representantes de ambos os lados ali presentes defendendo seus pontos de vista seriamente, exibindo seus desconfortos e, assim, fazem eclodir dificuldades, matérias-primas para a percepção de prós e contras de caminhos com intenção resolutiva.

COMPARTILHE JÁ

Compartilhar no Facebook
Compartilhar no Twitter
Compartilhar no LinkedIn
Compartilhar no Telegram
Compartilhar no WhatsApp
Compartilhar no E-mail

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

POSTS SIMILARES