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1141- Humor na beira do leito (Parte 2)

Bioamigo, rir/sorrir articula-se a certas reações humanas inatas e depende de um sistema multifatorial de controle por funções orgânicas – há, inclusive o riso patológico, o riso incontrolado do personagem Coringa e, ademais, há o riso contagiante do bebê.

Rir/sorrir faz parte de uma linguagem universal das emoções básicas, que, em geral, é muito bem aceita. Ademais, é positivo como método terapêutico em prol do bem-estar e se encaixa na expressão “rir é o melhor remédio”. Alinha-se à capacidade de conviver consigo, mover-se entre o passado e o futuro sem deixar de viver o presente, especialmente em situações que não podem ser mudadas. Uma frase bem humorada pode ser a maneira como alguém permite-se expressar um forte sentimento que de outra forma ou lhe violentaria ou ou soaria politicamente incorreto – um subterfúgio para ajuste social.

Na beira do leito, o humor deve ser levado a sério. É um momento ao longo de um continuum de emoções que pode trazer muitas vantagens para a conexão do profissional da saúde com o paciente. Por exemplo, ele contribui perante o medo, a ansiedade, a preocupação para criar um clima favorável para uma tomada de decisão compartilhada. Como dito por Grouxo (Julius Henry) Marx (1890-1977): Um palhaço é como aspirina, só que funciona duas vezes mais rápido. A desejável serenidade com suas zonas cinzentas não exclui o humor.

Evidentemente, há a ocasião em que a sensibilidade interpreta como favorável para a completa abertura ao humor, há a ocasião para uma abertura apenas parcial e há a ocasião para a total inconveniência. Cada profissional da saúde deve construir sua avaliação sobre o uso do humor na beira do leito e, também, sobre como lidar com eventuais dificuldades subsequentes por ele provocadas. Cito uma: Não se preocupe, seu caso é muito simples, posso operar com apenas uma mão. No dia seguinte, perante grave adversidade pós-operatória: Certamente o doutor fez o que disse, operou com apenas uma mão, foi negligente.

Pois é bioamigo, parece claro que o humor é desejável na beira do leito, mas há cerca de meio século, o riso/sorriso, como indício de bom humor ou de satisfação, definitivamente, não tinha boa fama na beira do leito, não era bem-vindo. Lembro-me bem, como eram compenetradas as aulas práticas de Propedêutica física, como se uma tirada bloqueasse a retenção do ensinamento, todos nós ali em ordem unida seguindo o compenetrado mestre (Mario Giorgio Marrano, 1920-2013), aliás, inesquecível pelo conhecimento e dedicação.

Mas, bioamigo, a sisudez coletiva acentuava o paciente sob exame como uma pessoa coisificada em uma bulha cardíaca, uma borda inferior do fígado, um reflexo exaltado, invadida no espaço pessoal, nenhuma extroversão comunicativa, nenhuma expressão empática de agradecimento pela colaboração, talvez pelo risco de desviar o foco propedêutico. Exagero? Até posso estar sendo radical, mas é a imagem bruta que ficou.
Pude de certa forma me redimir desta inadequação comportamental quando passei a dar aulas de Propedêutica cardiológica no InCor, e comprometi-me em ficar atento às solicitações de permissão, à seleção de momentos mais propícios para os pacientes doarem-se propedeuticamente, à percepção de reações de desconforto/exaustão por parte do paciente. Embora eu não seja uma pessoa exatamente extrovertida, incorporei o humor como instrumento da educação sobre anamnese e exame físico, logo percebi como o sorriso do professor na ocasião propícia trazia uma sensação de conforto ao estudante, um reforço positivo para a conexão didática. Memórias d´um esteto ilustra.

Voltando àqueles idos da década de 60 do século passado, a reputação da verve do carioca, a disposição para observações bem-humoradas, mantinham-se inibidas. Claro, algumas “transgressões” eram inevitáveis entre os estudantes, apesar dos olhares atentos – e reprovadores- da enfermagem de irmãs da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, onde travamos os primeiros contatos com a beira do leito- enfermarias 4 (feminina) e 20 (masculina)- nossas salas de aula para o aprendizado das construções de linguagem da profissão. Registre-se, palavrão era jamais, na beira do leito a autocensura ao mesmo era rigorosa.

A vivência profissional já sem a supervisão me fez ver que não havia uma cara própria pré-moldada para apresentar na beira do leito. Não cabia uma disciplina espartana sobre o rosto, aliás, creio que nunca houve mesmo uma facies de médico. Reaprendi que o humor – uma virtude- não era assim tão inconsistente com a aplicação da tecnociência, percebi que sua desvalorização era preconceituosa.

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