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853- Geometria na beira do leito (Parte 1)

Obedecer é submeter-se a uma ordem externa. Quem obedece pode colidir com os próprios valores e com representações de liberdade. Passagens bíblicas são ilustrativas. A obediência agrada os outros- como disse Francois de La Rochefoucauld (1613-1680) – concordar comigo é sinal de bom senso– mas não necessariamente a si próprio, o que movimenta a moral, a ética e o legal na beira do leito contemporânea. A autenticidade da obediência é dos temas nobres da Bioética.

O médico obedece à medicina e ao código de ética e para quem acha o termo muito forte podemos dizer que ele atua em conformidade com a medicina e o código de ética. Ele vivencia Obedienciauma não liberdade prática e seus valores pessoais são fios condutores das atitudes profissionais.

A obediência do paciente ao médico é comportamento esperado, há um ritual de obediência tradicional na beira do leito, mas uma ordem médica não constitui um imperativo, há outras valorizações além do domínio das evidências científicas que mais recentemente passaram a ser consideradas.

EncruzilhadaAssim, se ordem de um juiz, de uma código de trânsito, de um serviço com vínculo empregatício é para ser obedecida sob pena de punição, uma ordem médica não contém o mesmo sentido de obediência em nome de um bem. Há um simbolismo peculiar na beira do leito, diríamos que a imagem do estetoscópio não predispõe à obediência no mesmo nível do que o martelo do juiz, a caneta do RH da empresa ou a placa de trânsito.

De fato, ao estar paciente, a pessoa entra na abrangência da autoridade do médico de maneira empoderada para fazer valer de imediato sua eventual discordância, mais do que como cidadão comum perante as autoridades acima mencionadas. A sociedade assim se organiza. Um longo processo cumulativo de atenção à cidadania que orienta um momento.

O encontro médico-paciente é a reunião de dois outros num contexto de saúde, onde expansões e limitações estão sujeitas tanto ao dever profissional de organizar e esclarecer estratégias quanto ao direito do paciente de não cumprir. Aproveitando a menção ao trânsito, o direito à autonomia representa a faixa de segurança para o paciente atravessar a medicina. A cada esclarecimento, o paciente precisa olhar para os dois lados, o das evidências científicas e o dos próprios valores e preferências, ao mesmo tempo em que o médico prudentemente desacelera. Ao contrário de uma via de trânsito, a beira do leito é uma totalidade de faixa de segurança.

O paciente tem liberdade teórica e prática para exteriorizar sua discordância e desobedecer sempre que ocorrer uma tensão com algum tipo de representação de malefício para si. As adversidades imediatas expostas numa bula de medicamento podem assustar mais – e gerar desobediências- do que aquelas explicadas pelo médico acerca do prognóstico mais tardio da evolução natural da doença.

Habitualmente, o paciente que “desobedece” ao médico não questiona a conformidade da recomendação beneficente com o estado da arte, ele “apenas” não a realiza. A voz individual de oposição é fraca – já foi punida há não muitas décadas com o bloqueio do registro num hospital público- mas fortaleceu-se pelo direito ao princípio da autonomia da coletividade de cidadãos-pacientes.

Foi eliminado  qualquer sentido de obediência cega como já tivemos como recomendação a pacientes- Preceitos que se recomendam ao publico seguir em beneficio dos enfermos e da harmonia que deve reinar entre o grêmio médico,  8º- O enfermo deve implícita obediência às prescrições medicas, as quais não lhe é permitido alterar de maneira alguma. Igual regra é aplicada ao regime dietético, ao exercício e qualquer outras indicações higiênicas que o facultativo creia necessário impor-lhe (Código de Moral Médica-1929). Atualmente, a discordância do paciente exige-lhe assumir responsabilidades sobre a não realização, por isso a relevância de ser bem esclarecido sobre o intuito beneficente.

A Bioética da Beira do leito enfatiza que a sequência dúvida interna- exteriorização da mesma- expressão da discordância- desobediência (não consentimento) deve ser motivo de frequentes reavaliações porque se por um lado representa um alerta pela exceção, por outro lado, está sujeita a abusos de autoridade.

Na beira do leito, o sentido vertical da obediência horizontaliza-se como permissão ou consentimento. A diferença é que permissão não subentende uma negação como acontece com o consentimento. Esticar o braço compreensivamente para a coleta de sangue é uma permissão. Responder a uma solicitação de visita religiosa no quarto de internação é ato de consentimento.

A convivência inevitável com possibilidades de abuso do profissional da saúde e de comportamentos de exceção do paciente inclui-se entre os aspectos morais da beira do leito contemporânea. São situações que exigem muita atenção porque quebram a camada cristalizada da repetição ética. Ambos trazem uma forte contribuição pedagógica, o abuso por expor prejuízos ao uso a serem evitados e a exceção por desafiar a regra, uma determinação sempre sujeita a aperfeiçoamentos.

A medicina e as ciências da saúde em geral aplicam muitos métodos transformadores em situações de vulnerabilidade criando cenários de combinações de uso, abuso e dependência de atitudes. Há inúmeras dobras, há fronteiras cinzentas, há expedientes, há justificativas desafiadoras de qualquer ortodoxia ética.

A militância em Bioética facilita distinguir matérias-primas de comportamentos, algo como dar um rewind no liquidificador e assim enxergar os pedaços que foram homogeneizados. Pode até desagradar circunstantes, mas contribui para sedimentar que a verdade é do conhecimento e que o valor é do desejo. Cada beira do leito contemporânea tem suas verdades desejadas, razão para ambiguidades, incompreensões e conflitos.

O abuso que violenta e a exceção (anti-violência) que nos lembra que nada ocorre sempre igual contribuíram para três mudanças éticas expressivas e interdependentes na conexão médico-paciente contemporânea:

1- Redirecionamento da tomada de decisão saindo do médico e passando para o paciente, o que sob o aspecto da Bioética significa hierarquização da autonomia sobre a beneficência                                           (motivado pelo potencial de abuso de poder)

2- Ampliação da complexidade dos métodos que o médico precisa selecionar para o paciente                     (maior influência sobre as exceções)

3- Forte influência da disponibilidade de recursos financeiros sobre as boas práticas                                     (risco de abuso e justificativas de exceção)

Quem pratica medicina há algumas décadas tem mais chance de enxergar os contrastes das mudanças. Em síntese, há mais qualidade tecnocientífica atualmente disponível do que na época da formatura, a alocação de recursos ficou mais competitiva e o paciente ganhou voz reativa a evidências científicas.

Muito melhorou, muito piorou dirá o médico antigo para o jovem colega que vibrando com a medicina que tem nas mãos ficará sem entender a apreciação crítica do panorama contemporâneo e, como se diz, é preciso desenhar-lhe. A Bioética se propõe à tarefa.

A Bioética da Beira do leito adotou um cantinho para o legado do psiquiatra Enrique Pichon-Rivière (1907-1977) representado por sua teoria dos grupos operativos por entender que a relação médico-paciente é um grupo conectado num tempo e num espaço com mesma finalidade – diagnóstico e tratamento-  com papéis que devem ser distribuídos e aceitos, cada qual com suas expectativas. Ausência de qualquer conotação de absoluta submissão do paciente.

O médico tem um papel de liderança tecnocientífica e de porta-voz da medicina. PlataoO paciente tem um papel de porta-voz de suas preferências e valores e com possibilidades de um papel de resistência a mudanças. Ambos exercem um papel de representação de adversidades, pois não há beneficência sem risco de maleficência em medicina. Idealmente, médico e paciente formam afiliação, cooperação, aprendizagem e comunicação, o que significa que a conexão entre ambos pode ser objeto de medições, conhecimento, arte e linguagem, o que nos remete para a geometria. A Bioética da Beira do leito pode, então, tentar desenhar a ética contemporânea para a compreensão do jovem médico. Como afixado à entrada da Academia de Platão: Que aqui não adentrem os não-versados em geometria. 

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