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69-Vivência, evidência e proximidade cirúrgica

surgery_clip_artMerecer a  confiança do paciente admite o compromisso do médico em preservar o princípio hipocrático de não intencionar provocar um dano. Diagnóstico correto e indicação terapêutica cientificamente validada são fundamentais para a fidelidade histórica do ser médico à Não Maleficência.

Na atividade clínica, depois de cumpridos os pré-requisitos do conhecimento em Medicina, a expectativa pelos resultados da aplicação do tratamento associa-se , em essência, a reações a fármacos e a mudanças de hábitos de vida. Danos do tratamento são creditados aos riscos  embutidos na eficiência comprovada dos métodos.  É iatrogenia da Medicina. Não é iatrogenia do médico  se ele executa seguindo o estado da arte. É comum que o mau resultado suscite a pergunta: “O que foi que aconteceu?”. Ela carrega conotações de impessoalidade e de acaso. Eu me empenho, o resultado éseu e assim vamos juntos em busca dos ajustes necessários.

Já a atividade cirúrgica admite o conceito da proximidade cirúrgica. Ele formula que  a evolução do paciente está intimamente envolvida com a forma de  execução da operação diretamente no corpo do paciente pelo médico. O cirurgião faz parte do cerne do método, depende de uma curva pessoal de aprendizado, e angustia-se com a pergunta “O que foi que eu fiz?” perante o mau resultado. É proximidade invasiva, enquanto que na atividade clínica prevalece a não invasiva.

A cinética e a dinâmica de um fármaco e o percurso e o efeito de uma exérese de órgão apresentam, pois, distinções com implicações éticas. É na inovação que estas se tornam mais aparentes.

É fato que a inovação cirúrgica não costuma cumprir os rituais universalizados das fases I, II e III da pesquisa e da avaliação na fase IV de mercado, como observados na inovação farmacológica. Ela pode vir a ser praticada de modo muito mais simplificado, à margem de randomizações e, muitas vezes, a divulgação é um artigo acerca de série de casos assistenciais que obtiveram resultados promissores. Tentativas de inovação sobre detalhes cirúrgicos que não bem sucedidas e que não demandaram uma pesquisa formal não são, comumente, compartilhadas na literatura.

Lacunas de eficácia de técnicas cirúrgicas admitem chances de serem preenchidas em campo, ditadas por um feedback criativo  com os achados do cirurgião experiente. Observa-se que o entendimento do nível de rigor científico que possa ser aceitável em relação a inovações difere entre Serviços de Cirurgia, numa mesma cidade, num mesmo país.

Análises críticas evidenciam que pequenas mudanças da forma de operar são inovações – alguns preferem o termo procedimentos não validados- que não costumam passar por filtros formais de regulação, como exigidos na atividade clínica.  Sem dúvida, há mais individualidades, há preferências de passos a passos, é como se o cirurgião dissesse ao clínico que ele pode contar com os olhos e as mãos para fazer movimentos e contramovimentos momentâneos pró-benefício e anti-malefício, comportamento que o clínico não pode  reproduzir com a presteza, depois que um fármaco que prescreveu entra na circulação sanguínea do paciente.

Subentende-se que uma inovação associe-se a uma técnica ou a um dispositivo que provoque avanços de Benefício e de Segurança e contribua para melhor custo-efetividade. Mas, nem sempre, o tempo ou um estudo sistemático comprovam a superioridade  de “bons resultados iniciais”  já “estreados” assistencialmente.

Por isso,  há validade nos questionamentos sobre o fato de muitas novidades repetidas caso-a-caso não terem passado por uma Comissão de Ética ou não terem sido explicitamente informadas aos pacientes.  Aliás, a inovação cirúrgica traz um dilema na aplicação do Consentimento Esclarecido, pois, as próprias incertezas do cirurgião limitam dar informações essenciais para a decisão pelo paciente.

Neste contexto de  discussão sobre a carência de clareza do que seja  uma variante da rotina para satisfazer circunstâncias do paciente e do que constitui uma técnica inovadora planejada, não basta a integridade do cirurgião para assegurar uma tomada de decisão absolutamente ética. O potencial de abusos- sempre eles- requer salvaguardas formais.

Assim sendo, preocupado com a  necessidade de  regulação, não somente  pelas pressões que o cirurgião sofre para inovar e inclusive pela humana tendência a enfatizar benefícios e a minimizar malefícios do que é sua criação, há cerca de 10 anos, o Diretor da  Association of American Medical Colleges (AAMC) Council of Academic Societies Affairs  solicitou a cinco Sociedades de Cirurgia  uma  normatização da diferença entre  variação desnecessária de revelação, inovação  exigente da revelação e  critérios para  o encaminhamento para pesquisa precedente ao uso assistencial.

Quatro anos, depois, o resultado elaborado pela Society of University Surgeons foi o seguinte: http://ac.els-cdn.com/S1072751508001889/1-s2.0-S1072751508001889-main.pdf?_tid=73afcb52-a605-11e4-92c8-00000aacb35d&acdnat=1422350487_2c50a319aa0f7731068cf37d43b1fbe6

A-   VARIAÇÃO- Modificação pequena  do procedimento cirúrgico que, embora não validado por estudos, não provoca expectativas de acréscimo de riscos de dano ao paciente.

B-   INOVAÇÃO- Novo procedimento cirúrgico ou  modificação que de fato difere da rotina praticada, que pode implicar em elevação dos riscos para o paciente e cujos resultados não foram descritos. Há a inovação  ditada pela circunstância (ad-hoc-para a finalidade) e que, eticamente, demanda a revelação subsequente ao paciente. Há a inovação que necessita de pesquisa sistemática, inclusive após o eventual uso circunstancial por uma ideia de campo. É situação onde o cirurgião deve assumir a postura de investigador a fim de mais precisamente validar uma hipótese  ou um conhecimento com chance de universalização.

Propôs- se que  um Comitê de Inovação Cirúrgica deveria ser ouvido  e  que quando  ele entendesse  que a inovação necessitasse de análise mais rigorosa acerca de benefícios e de malefícios e/ou de  publicação dos resultados,  faria  o encaminhamento  para um Comitê de Ética. A Duke University Medical Center, por exemplo, tem a figura do Distinguished Professor of   Surgical Innovation.

Além da apreciação pelo Comitê de Inovação Cirúrgica, a revelação para fundamentar  um Consentimento Esclarecido do paciente é  necessária quando: a) a inovação é planejada; b) ou difere significativamente da rotina; c) ou carece da publicação de resultados; d) ou acresce  potencial de danos ao paciente; e) ou quando mostra-se válido um consentimento específico pelo paciente. A presença de um destes 5 critérios compromete a inclusão da novidade  sob a denominação de Variação e portanto requer a consideração do direito à Autonomia pelo paciente e acresce o potencial de infringência ética e legal.

A Bioética da Beira do leito entende que a obtenção de evidências científicas por meio de estudos sistematizados deve ser a prioridade, contudo, concorda que o cirurgião, em função das peculiaridades do seu mister, não deve ter sua criatividade técnica rigidamente imobilizada. Assumir a responsabilidade e informar o paciente incluem-se nesta flexibilidade ditada pela proximidade cirúrgica.

 

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