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111-Um mosquito com vírus e a Bioética

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Há algumas semanas a manchete era sobre o vírus Ebola. A atual é sobre o vírus da Dengue. Numa linguagem moderna, os vírus  tornaram-se assunto viral. Interesse coletivo, necessidade inevitável, vontade geral.

O nome vírus vem do latim. Ele significa gosmento, nojento, venenoso. É agente filtrável que utiliza um hospedeiro humano para se propagar. Um migrante  desde os animais da floresta para o homem das cidades. Segundo o biólogo da evolução Jared Diamond (nascido em 1937) em seu livro Armas, Germes e Aço, presentes letais de animais ao serem domesticados: vírus do sarampo  e da varíola a partir do gado vacum, vírus da gripe a partir de porcos e de patos, que sofreram adaptações.

No caso da Dengue, fêmeas do mosquito Aedes aegypti contaminadas pelo arbovirus (arthropod-bornvirus) agente causal da doença, produzem ovos com o vírus, transmissão vertical que gera  novos mosquitos propagadores da doença para o ser humano. O Aedes aegpyti “urbano” brasileiro tem ancestral que vivia na floresta africana abaixo do Saara e que pegou carona em navios negreiros. Por curiosidade,  dunga  era o nome da doença, pouco depois mudado para dengue, em Cuba, durante a epidemia de 1828. Este mesmo país está ligado à identificação do Aedes aegypti  como transmissor da febre amarela  pelo estadunidense Walter Reed (1851-1902) na transição do século XIX para o século XX.  E pensar que o  vilão Aedes aegypti mede menos do que 1 cm…

Afrouxamento da vigilância sanitária em períodos de pouca incidência da Dengue, maior dispersão do mosquito pela expansão dos transportes domésticos e internacionais, desenvolvimento de resistência ao pesticida Dicloro-difenil-tricloroetano (DDT), preocupação com custos e carências nos cuidados da população com  criadouros de água, somam-se a desinteresses governamentais em participar de programas de colaboração, como provocadores de surtos da doença em vários países.

Sempre que uma doença transmissível ameaça grande número de pessoas, instala-se um clima de crise, conscientiza-se da carência de recursos terapêuticos e preventivos e deseja-se solução no curto prazo. É reação humana esperada. Fica sempre a sensação de que providências estão atrasadas. Na busca do “tempo perdido”, facilidades técnicas e financeiras são discutidas. 

Realidades desta natureza associam-se a angústias que adquirem prioridade de enfrentamento e suscitam fé na aproximação da ciência à atuação prática. Pensamentos alternativos surgem. Verdades equivalentes fundamentam opiniões divergentes quanto à prática de métodos ainda inéditos na assistência ao ser humano, quer para cuidar, quer para evitar uma doença. Todavia, a ciência tem a sua velocidade e acelerações trazem preocupações para quem tem responsabilidades com a gestão da Saúde. Mas o estímulo é favorável para que certas iniciativas deslanchem, afinal já se disse que a necessidade é força motriz da criatividade e estímulo para a competência e o trabalho sério.

Quando o cirurgião sul-africano Christian Neethling Barnard (1922-2001) fez o primeiro transplante de coração humano, os norte-americanos estavam mais bem preparados tecnicamente, mas estavam imobilizados pelo empecilho  ético-legal da retirada do órgão “vivo” de um paciente declarado morto “circulatoriamente”. Houve pronta mobilização e em não mais do que 6 meses uma Comissão ad-hoc na Harvard School of Medicine criou o conceito da morte encefálica, assim permitindo a preservação de funções orgânicas até o momento da captação para transplante- vale  dizer a viabilidade de órgãos- numa pessoa declarada morta.

O surto de Ebola na África há poucos meses, que provocou mais de 6000 óbitos, constituindo uma ameaça planetária, trouxe turbulências ao conceito que pesquisas sobre inovação terapêutica ou preventiva, ainda em desenvolvimento, não validam cientificamente o emprego assistencial. Controvérsias de opinião surgiram, um grupo de autoridades entendendo que seria imprudência antecipar  o uso do que estava sob pesquisa e outro grupo de autoridades entendendo que seria negligência não arriscar alguma chance de sucesso.  Há informações que  o tratamento com  anticorpo monoclonal anti-vírus Ebola (ZMapp), até então testado tão-somente em animais não humanos, foi aplicado a pacientes no recente surto da doença, à margem de uma estruturação randomizada. Qualquer conclusão sobre dimensão de efeito (I, IIa, IIb e C) ficou prejudicada por não ter tido o contexto de uma pesquisa clínica. De qualquer maneira, o uso  representou  a prevalência da clareza do mau prognóstico da doença sobre a obscuridade de benefício da inovação pretendida.

Escreveu-se, assim, um capítulo relevante para a orientação de atitude para frente ao substancial dilema e a suas indagações: É admissível aplicar um método ainda experimental, já com alguma perspectiva de esperança pelo já realizado, com o objetivo humanitário de salvar vidas ante inexorável má evolução clínica e elevado percentual de óbito? Provas de Segurança do método poderiam ser justificativa suficiente para a liberação assistencial da presunção de benefício? A grandeza dos custos é variável  capital? As amarras do rigor científico de pesquisa  podem ser afrouxadas perante circunstâncias extremas? Recorde-se que nos primórdios da AIDS ocorreu o uso de métodos ainda não validados e  que certos casos oncológicos  costumam suscitar direcionamentos por compaixão para o emprego de drogas não licenciadas para o diagnóstico.

Triangulo Escaleno
Triângulo escaleno
triangulo isosceles
Triângulo isósceles

A  integração entre Beneficência, Não Maleficência (Segurança) e Autonomia forma triângulos  equiláteros, isósceles e escalenos, de acordo com o vigor identificado de cada um destes princípios da Bioética. Numa situação de crise, a tendência é haver a assimetria dos lados (isósceles ou escaleno), tanto para o   intuito do controle de manifestações clínicas, quanto para o da evitação da doença. A enorme dose de afeto envolvida tende a fazer o racional priorizar o presente (Beneficência e Autonomia) em relação ao futuro (Segurança), mesmo sabendo que a infraestrutura local para eventual uso antecipado poderá ser inferior ao habitual da pesquisa formal e impactar fortemente no resultado final.

Assim, a distinção no trato do dilema é que a indicação terapêutica de um método não validado visa a um resgate da saúde atual terrivelmente comprometida, passível de aceitar argumentos de “a qualquer preço” da saúde futura. O foco está no momento desesperador, suscita o inconformismo com o niilismo. Já na indicação preventiva, como uma vacina, pessoas sob risco adquirem a dualidade  não doentes-doentes a qualquer momento, provocando pensamentos de privilégio tanto do não-doente atual quanto do doente a qualquer momento, pelo impacto que a visão de futuro possa ter em cada um. Ademais, eles devem ser sensíveis  a entendimentos da Organização Mundial de Saúde e dos Médicos sem Fronteiras que estudos clínicos randomizados podem não ser a melhor escolha para a circunstância, até porque apresentariam grandes dificuldades técnicas, impossibilidades mesmo, dependendo da região. Sempre ficará a terrível possibilidade de que muitos que não contrairiam a doença viriam a padecer de sequelas das adversidades do método preventivo. O escritor estadunidense William Clark Styron Jr (1925-2006) mostrou no seu livro  A Escolha de Sofia as tristes consequências  psico-sociais de tomadas de decisão extremas com alto grau de afetividade. O profissionalismo não está totalmente imune às mesmas.

Todas estas considerações polêmicas a respeito de repensar  a rotina  motivado pelo sentido moral da responsabilidade profissional, comungam, de alguma forma, com a essência da ressalva salvo em iminente risco de morte  constante  em artigos do Código de Ética Médica vigente. Ela transmite o máximo valor dado no Brasil à preservação da vida humana.

Há informações auspiciosas sobre um próximo controle da Dengue no Brasil pela vacinação, uma bem-vinda inclusão no Calendário de Imunizações disponível para o brasileiro, como já acontece com outras enfermidades causadas por vírus. Cobra-se pressa. A ciência não deve ficar refém das emoções, mas não pode ficar insensível ao impacto das mesmas.

Esperamos ansiosos e confiantes uma nova e aliviadora manchete viral!

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