PUBLICAÇÕES DESDE 2014

29-Medicina Narrativa e Bioética

relmédpacA Bioética contribui para uma mais adequada leitura da beira do leito. Pelo médico e pelo paciente. Para ler a beira do leito, ambos precisam compartilhar informações. O paciente, por exemplo, expõe a anamnese, enquanto que o médico informa, por exemplo, opções de conduta diagnóstica e terapêutica.

Considerando que o médico deve relatar para o paciente os prós e os contras, os benefícios e os malefícios do aplicável, e, quando possível, dar números sobre probabilidades, fica claro que é o compartilhamento de informações que deve constar na base da tomada de decisão autorizada pelo paciente. Portanto, não devemos pensar em  compartilhamento da decisão com o paciente, e sim, em empenharmos para oferecer-lhe uma plataforma do conhecimento pertinente da Medicina, para que ele compreenda a essência dos movimentos possíveis.

Dentro desta lógica, a participação do paciente não deve ser a de tão somente dar aceitação a uma proposição  de conduta do médico, mas ela deve ser a de receber elementos para o seu juízo e ter um período de tempo para os analisar e fazer escolhas.

A recomendação ao paciente para que proceda a uma mudança de hábitos é ilustrativa. Atualmente, é difícil alguém desconhecer que não é saudável fumar,  deixar de se nutrir adequadamente e ser sedentário. Por isso, é pouco produtivo dizer ao paciente; “… o senhor precisa deixar de fumar, controlar excessos alimentares ou entrar para uma academia…”. É claro que palavra de médico tem sua força, mas é que ele continua praticando os maus hábitos apesar da informação de domínio público.

É desejável que o médico vá além,  que entenda os porquês (excesso de trabalho, comer fora de casa, falta de gosto pelo exercício físico), as dificuldades (o joelho dói, fica irritado se não comer doce) e o melhor caminho para dar destino  a explicações sobre as desvantagens da persistência e as vantagens da modificação.

Por isso, o processo de idas-e-vindas de tomada de decisão não deve se valer de  um reducionismo radical para facilitar o posicionamento do paciente. Pelo contrário, deve  prevalecer que qualquer tomada de decisão é influenciada por incertezas e por riscos que precisam estar bem esclarecidos e sobre os quais o paciente deve emitir opinião. Evidentemente, assim fazendo, o médico tornará mais difícil a participação do paciente no processo de decisão. Mas, é assim que se deve entender a aplicação do Princípio da Autonomia.

Fica, então, a ideia que o objetivo da comunicação do médico ao paciente sobre a plataforma da tomada de decisão é menos facilitá-la por “eliminação de conflitos e de dilemas” e mais dificultá-la por “inserção de conflitos e de dilemas”, para que o paciente  faça escolhas que sejam as mehores para si e se responsabilizem pelas mesmas.

Posso imaginar o leitor bioamigo pensando que a prática tem sido diferente. Que  o tempo do médico é escasso para espiralar no sentido da tomada de decisão e que a maioria dos pacientes deseja mesmo é saber o que é para ser feito. São duas verdades, sem dúvida. Compartilho com elas, porque observo, habitualmente. Insistir gera até entendimentos do paciente que há insegurança do médico na proposição.

Paternalismo e autonomia invadem, reciprocamente, os seus espaços, na beira do leito. E, pelo que se depreende do cotidiano, acontece, no embate entre teoria e prática, mais expansão de paternalismo sobre autonomia do que o oposto. Em outras palavras, decidir uma coisa em detrimento de outra fica muito mais na quota do médico.

Se for assim que funciona, se mudanças de paradigma pró-desejo do exercício da autonomia pelo paciente demandariam pelo menos uma ou duas gerações, torna-se essencial que o médico transcenda o bastante científico e se capacite ao máximo para  diligentemente conseguir captar significados de vida do paciente e, na falta da manifestação  própria do paciente, incluí-los “por procuração”, na medida do crédito que possa haver, no processo de tomada de decisão.

E como é que o médico deve fazer? Entendo que  ajuda muito praticar a  Medicina Narrativa. E o que ela é? É  ser médico empregando a Competência Narrativa para maximizar o atendimento com empatia, reflexão, profissionalismo e confiabilidade, que como se sabe, é quarteto de ouro das boas práticas na beira do leito.

Desta maneira, se o paciente não irá fazer escolhas e daí  consentir ou não e irá apenas permitir a conduta, que haja a boa prática da Competência Narrativa pelo médico.

Competência Narrativa é a capacitação para conhecer, absorver, interpretar e atuar sobre histórias, especialmente as desfavoráveis para quem conta. História clínica e história de vida. Dá um acrônimo fácil: CAIA- que caia a ficha… e a ligação se complete.

O seu uso pelo médico contribui para a autenticidade intersubjetiva na relação médico-paciente. É o que espera, mas não somente. Há a sua utilidade para a visão da atuação de si próprio, para a relação com colegas e para a interface com a  sociedade.  Possibilita uma conjunção dos significados cognitivo, emocional e simbólico de qualquer manifestação sobre situações e experiências, capital para a qualidade do comprometimento. É cuidar-se à semelhança do que se faz para ter a concentração necessária para ler e entender um livro. Foco na narrativa, portanto. E, ademais, contribui para perceber mais rapidamente os vários tipos de mensagens, o que traz menos desperdício do tempo que “não temos”.

A Competência Narrativa auxilia na compreensão de palavras não explícitas por metáforas e por alusões, da estrutura do contexto e das perspectivas. É instrumento vantajoso porque o cenário de uma doença costuma produzir modificações na maneira habitual da pessoa se expressar. Já fiz a anamnese de um grande orador, conhecido pela lucidez de raciocínio, que, naquele momento de apreensão não conseguiu dar clareza ao que pensava, aparentando refrear a sua capacidade de convencimento.

A Bioética da Beira do leito desenvolve-se no entendimento que o médico não deve afastar-se do humano do paciente por desvios ligados a contextos do dever de fazer.  Neste mister de evitar o médico descolado do paciente tão ao gosto de gerações passadas, a Competência Narrativa facilita dar significados individualizados à conexão médico/pessoa e paciente/pessoa. Ao proporcionar capturas da postura de paciente, ela beneficia, não somente, a idealidade da autonomia, acrescendo uma forma mais amigável  para o médico dar as coordenadas para que o paciente analise os prós e contras de uma tomada de decisão, como também,  a atitude de médico quando precisar “resolver sozinho” a pedido do paciente e  quando tiver que transitar por situações de não adesão à conduta que acontece, justamente, porque o paciente não se manifestou ou não teve autenticidade na manifestação durante o processo de tomada de decisão.

Conhecer, absorver, interpretar e atuar sobre histórias aperfeiçoam-se na freqüência à beira do leito. É valor da Competência Narrativa integrada à Bioética da Beira do leito para as boas práticas da tríade indispensável: compreensão da doença do paciente, tratamento das necessidades médicas e acompanhamento da evolução.

 

 

COMPARTILHE JÁ

Compartilhar no Facebook
Compartilhar no Twitter
Compartilhar no LinkedIn
Compartilhar no Telegram
Compartilhar no WhatsApp
Compartilhar no E-mail

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

POSTS SIMILARES