3834

PUBLICAÇÕES DESDE 2014

HM20- O passado de fontes não médicas da Medicina (Parte II)

A parte I https://bioamigo.com.br/?p=4884 deixou evidente o desequilíbrio entre a baixa disponibilidade pelo médico e o alto crédito da sociedade a respeito da eficiência dos recursos para cuidar do doente ao longo de  séculos. A autoridade de médico estava muito mais centrada na sua atitude presencial de acolhimento ao paciente do que nos instrumentos técnicos para influenciar expressivamente a história natural das moléstias.

Nesta segunda parte, apresentamos algumas curiosidades sobre o desenvolvimento de benefícios terapêuticos a partir do acaso, do inconformismo com uma declaração de mau prognóstico e da simbiose de um povo com bens naturais.

O marinheiro estava péssimo. Os demais decidiram desembarcá-lo para que morresse em terra. Rastejando, ele reuniu as derradeiras forças e chegou ao campo de capim. Dele se alimentou. Ficou curado!

Não há registro de como ele teria sido resgatado, mas, de alguma forma, a ingestão de vegetal contendo vitamina C chegou até o britânico James Lind (1716-1794). É dele a publicação que recomenda o uso do suco de limão em viagens marítimas para evitar o escorbuto.Apresentação1

É de se destacar que por cerca de 40 anos o Almirantado britânico não acreditou que algo tão simples como fruta cítrica poderia ser mais eficiente do que um “Antiscorbutic Golden Elixir“.

Cerca de 150 anos depois, o húngaro Albert Szent-Györgyi (1893-1986) deve ter pensado muito no marinheiro que comeu capim quando recebeu o Prêmio Nobel de Medicina(1937) por seus estudos sobre o ácido ascórbico( vitamina C).

1d84cbd68a401a8c92861a9d7bca010d
Trompa de Eustaquio

O agente postal é o francês Edme-Gilles Guyoy que no século XVIII, tendo sido desenganado pelos médicos sobre a surdez, resolveu estudar a anatomia do ouvido. Dirigiu-se à Biblioteca Municipal, consultou vários livros de anatomia e aprendeu sobre a ligação do ouvido médio com a nasofaringe. O insight aconteceu: o ar que normalmente preenche a trompa é essencial para a boa audição.

Convencido que a sua surdez era causada por entupimento da trompa de Eustaquio pelo catarro que habitualmente lhe incomodava, pensou numa solução. O processo criativo que já  desenvolvera os necessários encontro e envolvimento culminou com a concepção de uma forma original de desentupir. Guyoy construiu um tubo curvo revestido por borracha, “cateterizou” a própria trompa -não há registro do lado do corpo- e acoplou uma bomba. Após as devidas compressões e lavagens, o agente postal foi recompensado pelo esforço construtivo em prol do próprio futuro: a audição normal foi restabelecida!  Acabou conferencista na Academia Francesa de Ciências, capaz, evidentemente, de ouvir as inúmeras perguntas dos cientistas impressionados e as repetidas palavras elogiosas.

Cinchona_calisaya-2
Cinchona calisaya

O jesuíta é um religioso que teria estado entre os incas no Peru. Após contrair malária, ele foi curado com um chá da casca de uma árvore. Verificou-se, depois, que a  casca provinha de um arbusto denominado de cinchona. O nome quinino é simplificação do termo original e a droga foi introduzida na Europa no século XVII  como “casca do jesuíta” com a pomposa apreciação: “… O quinino está para a Medicina como a pólvora está para a guerra…”. Soberanos foram curados e médicos tornados Cavaleiros pelo benefício do quinino.

Este conhecimento histórico-farmacológico traz alguns ensinamentos. Dentre eles destaco:

  1. A apreciação da expectativa da mudança de ausência para presença de um benefício para determinada doença funciona diferente daquela acerca de inovações superiores às existentes. Um dos efeitos em nossos dias é a possibilidade do uso de placebo em pesquisa que não causa nenhum prejuízo a este grupo controle e, em contraponto, a inconveniência do seu uso como controle de inferioridade/não inferioridade/superioridade da pretensa inovação em relação a um fármaco já validado e utilizado com algum grau de benefício terapêutico.
  2. Em meio à carência de recursos benéficos, o aspecto hipocrático da não maleficência tende a ser deixado em segundo plano. Percentual de pacientes com diagnósticos com mau prognóstico e ausência de benefícios validados aceitam participar de pesquisas clínicas ou consentem em receber tratamentos não exatamente validados para a sua situação clínica.
  3. Medidas terapêuticas simples, relacionadas especialmente a hábitos de vida, não devem ser motivo de depreciações apriorísticas. Se por uma lado é função da ciência explicar a Natureza, por outro é sensato dar crédito a sugestões da mesma Natureza.
  4. O poder de observação do leigo, especialmente se portador de doença crônica que lhe instrui constantemente, o conhecimento “off-road” de segmentos da população e os efeitos da procura de “segundas-opiniões” por iniciativa própria multiplicados pela internet não devem ser rotineiramente menosprezados, há inteligência fora de Diretrizes… Obviamente, qualquer endosso é vigorosamente exigente de filtros com poros científicos os mais seletivos possíveis.
  5. A adversidade ao medicamento ligada a causa-mortis pode resultar camuflada pelo conhecimento da fatalidade inexorável dada pela história natural. É sabido como hoje fica difícil diferenciar o grau de cada influência letal em determinadas pesquisas.

COMPARTILHE JÁ

Compartilhar no Facebook
Compartilhar no Twitter
Compartilhar no LinkedIn
Compartilhar no Telegram
Compartilhar no WhatsApp
Compartilhar no E-mail

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

POSTS SIMILARES

fev0 Posts
mar0 Posts
abr0 Posts
maio0 Posts
jun0 Posts
jul0 Posts
ago0 Posts
set0 Posts
out0 Posts
nov0 Posts
dez0 Posts
jan0 Posts
fev0 Posts
mar0 Posts
abr0 Posts
maio0 Posts
jun0 Posts
jul0 Posts
ago0 Posts

fev0 Posts
mar0 Posts
abr0 Posts
maio0 Posts
jun0 Posts
jul0 Posts
ago0 Posts
set0 Posts
out0 Posts
nov0 Posts
dez0 Posts
jan0 Posts
fev0 Posts
mar0 Posts
abr0 Posts
maio0 Posts
jun0 Posts
jul0 Posts
ago0 Posts