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89-Doutor, não era o que eu pretendia ouvir

compaA consulta era para uma segunda opinião.  Escolheu-me  pelo currículo na internet e pelo vínculo ao InCor. Viajou de ônibus noturno por não apreciar o vôo e chegou com pré-confiança na capacidade profissional. E, também, com a expectativa de que ouviria o que desejava. O paciente conhecia bem o que se passava com ele e estava “atualizado” pelas consultas a médicos e à internet.

Foi uma consulta de 70 minutos. Ouvi sua história, examinei-o detalhadamente e analisei os exames trazidos. Nenhuma dúvida restou da minha parte. Eu confirmei o diagnóstico de uma lesão valvar importante e recomendei a substituição valvar. Informei-lhe que o risco cirúrgico era baixo por se tratar de pessoa jovem e sem doenças associadas. Enfatizei a alta probabilidade de usufruir de excelente qualidade de vida uma vez resolvida a anormalidade hemodinâmica.

Ao final da consulta, a revelação com semblante de frustração: “… Doutor, esperava que o senhor me desse um medicamento para evitar a operação…”. O paciente saiu triste, coçando a cabeça.

Ocorreu-me a questão da boa e da má notícia. Na minha óptica, eu dera boas notícias. A doença do paciente estava identificada e poderia ser tratada com excelente relação risco-benefício. Na minha escala de intensidade de problema, o caso se enquadrou no percentil mais baixo. Bom, mas o paciente é ele!

Perguntei-me se deveria ter conduzido de outra maneira para evitar a tristeza do paciente. A resposta em solilóquio veio imediata: o médico não se obriga a tomar sobre ele as penas dos pacientes, cabe-lhe aliviá-las profissionalmente e com generosidade.

Certamente, eu não fui cruel porque não me alegrei com o sofrimento do paciente, muito menos egoísta, porque me preocupei com ele. Não havia razão para ser um vendedor de ilusões.  Eu me comportei segundo um imperativo moral.  A ambiguidade era do paciente.

Qualquer condescendência da minha parte prejudicaria a busca da coragem para se submeter. Sabe-se que a aceitação  de situações difíceis é  facilitada pela repetição e pelo tempo para processamento da informação, uma vantagem do paternalismo fraco. Quem sabe numa terceira ou quarta opinião… Ou quando a condição clínica deteriorar…

Reforcei comigo como a Deontologia precisa da Bioética. Lembrei-me do artigo 34 do Código de Ética Médica: É vedado ao médico deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal.

Este salvo é terrível. Tristeza, frustração, manutenção do sofrimento emocional cabem dentro do dano ao paciente? Haverá diferença de interpretação perante presença e ausência de benefício pela Medicina? Quem seria o representante legal para este paciente capaz?

Compadecer-se e oferecer métodos para solução é o cotidiano do médico. Não obstante, precisa ficar claro que boas notícias médicas podem ser sentidas como más notícias pelo paciente.

Há satisfação profissional em fazer o diagnóstico- muitas vezes exigente de elevada expertise-, em comunicar opções terapêuticas eficientes, em reconhecer emergências, em reverter adversidades. O mesmo cenário, contudo, é passível de gerar insatisfação de pacientes: estou doente, preciso passar por um risco de morte, o meu caso complicou.

A compaixão reativa do médico ante os males do paciente, uma pessoa cuidando de outra pessoa, é sentimento que se desenvolve no profissionalismo. Ele requer uma proporcionalidade entre o racional e o emocional para tomadas de decisão e dá fundamento para o respeito aos princípios da Bioética. A sintonia médico-paciente nem sempre acontece, contudo.

Este caso ilustra como desejos idealizados pelo paciente para a circunstância clínica modulam diferenças de impacto e de conforto da informação recebida do médico. A boa-fé do respeito à verdade científica e à sinceridade profissional  versus ilusões tão leigas quanto humanas. E traz alguma luz sobre a dualidade paternalismo e autonomia.

A insistência respeitosa para o que  paciente- como o  relatado com alta probabilidade de sobrevivência graças à terapêutica- dê consentimento para o estado da arte atual da Medicina é paternalismo. Considerar o inverso- consentimento para a visão médica de futilidade na aplicação – na terminalidade da vida, é dito atenção à autonomia.

Não seria indevido conjecturar que é pelo paternalismo que se ajustam informações ao paciente, e que assim ocorre sustentado pela compaixão. A figura do copo meio cheio, meio vazio. Esvazia-se o sentido do paternalismo para evitar interpretações de negligência e carrega-se na autonomia para realçar a prudência.

O otimismo que procurei transmitir ao paciente na consulta acima relatada produziu efeito oposto ao que foi verificado em casos de terminalidade de vida por pesquisadores da Universidade do Texas, recentemente publicada no JAMA Oncology http://oncology.jamanetwork.com/article.aspx?articleid=2120917.

O objetivo do estudo foi avaliar a percepção de 100 pacientes ambulatoriais com  diagnóstico de câncer avançado a respeito da compaixão demonstrada pelo médico, por meio da observação de vídeos de 4 minutos. A informação a outro paciente também com câncer avançado sobre opções de tratamento oncológico era feita com mesmo grau de empatia, mas com mensagens mais otimistas ou menos otimistas. Os resultados demonstraram maior percepção de compaixão na atitude do médico que vocalizava mensagens otimistas.

Conjugando com o atendimento ao paciente acima referido, que ouviu “má notícia”, parece que o contexto da mensagem em função das expectativas é mais importante do que os aspectos técnico-científicos que o sustentam.  A Bioética interessa-se por este segmento que acentua que a recomendação  cientificamente validada do médico não é mandamento a ser cumprido por quem deseja outro enredo terapêutico.

O artigo concluiu pela necessidade de pesquisar formas mais adequadas de comunicar mensagens menos otimistas a fim de preservar a percepção pelo paciente de compaixão por parte do médico. Para a terminalidade da vida, ressalte-se, onde o médico não aprecia ser o portador da má notícia.

No caso da chance inequívoca de continuidade da vida, quando o paciente não vincula a informação otimista do médico a uma boa notícia, quem sabe, ele possa entendê-la dissociada de compaixão.

Com certeza, esse caso não é a exceção que confirma a regra idealizada de superposição de satisfação na conduta, quer pelas virtudes do médico, quer pelos desejos do paciente. Ele é, tão-somente, mais um. O próximo já deve estar a caminho.

Por isso, a validade do esforço da Bioética para harmonizar respeito à autonomia do médico para se portar segundo o seu profissionalismo e deferência à autonomia do paciente para decidir sobre o consentimento.

Relembrando o Código de Ética Médica, o princípio fundamental VII diz que o médico exercerá sua profissão com autonomia e o artigo 31 reza que é vedado ao médico desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente.

Cada atendimento, uma combinação distinta, calidoscópica!

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COMENTÁRIOS

Uma resposta

  1. Parabéns pelo texto… excelente!
    Me identifiquei muito com esse paciente!
    É frustante ouvir que você precisa realizar um procedimento cirúrgico!
    Mais no meu caso a indicação foi extremamente importante, e tenho certeza, como deste paciente também.

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