A Bioética da Beira do leito interessa-se pelo ecossistema que decompõe males das doenças, produz benefícios à saúde e estabiliza qualidade de vida e sobrevida. Ela interage simultaneamente com a) os crescentes saberes da Saúde que sustentam centenas de fins diagnósticos e terapêuticos e valem-se de dezenas de métodos e b) os infinitos comportamentos dos pacientes. Para tão numerosos movimentos e contramovimentos, lhe são úteis não mais do que 4 princípios.
Beneficência, Segurança (Não maleficência), Autonomia e Equidade formam a tetrapartite raiz nutriente do pretendido equilíbrio entre ciência e humanismo na beira do leito. O florescimento da harmonia de bem-estar físico, mental e social – o possível caso a caso- organiza-se em duas premissas da relação médico-paciente. A primeira refere-se às combinações de intenção, ação e comunicação por parte do profissional da Saúde (triângulo 1). A segunda diz respeito à idealidade de reparar o que está doente sem agravar comorbidades e preservando o que está saudável no paciente (triângulo 2).
A fundamentação principialista não é a única maneira pela qual pode-se enxergar a Bioética. Porém, ela é inegavelmente útil. Especialmente, pela íntima aliança com o vigor ético do dueto pilar da Deontologia Médica: Prudência e Zelo.
Refiro-me à Prudência como virtude aplicada no processo de tomada de decisão, a responsabilidade de definir o que escolher e o que evitar perante avaliações individuais de risco/benefício, a noção do que satisfaz o presente com melhor futuro. Já o Zelo é o dever de fazer o decidido de acordo com as boas práticas estabelecidas em Medicina.
Prudência e zelo irmanam-se qual barras de um trilho condutor do raciocínio clínico, unidos que estão no Art. 1º: É vedado ao médico causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência do Código de Ética Médica vigente.
Idealmente, a condução de cada caso deve ser feita no paralelismo entre prudência e zelo. O médico como retratista-https://bioamigo.com.br/?p=771.
E são os princípios da Bioética que fundamentam a retidão harmônica. Há uma bitola ética a ser respeitada, que admite não mais do que contidas variações de distância entre si.
Cada paciente deve se enquadrar na bitola ética, o que se dá por meio de ajustes justificados à “conduta de livro”, à “conduta-padrão”, à “conduta da diretriz”. Estas categorias são bússolas para o encontro de mehores caminhos, nunca algemas para levar aonde não se deseja.
Os ajustes para o respeito à bitola ética representam o calor humano da conduta prudente e zelosa para cada caso e que aquece o frio texto genérico do artigo do Código de Ética Médica vigente supracitado, quando é necessário proceder a interpretações.
A condução da tomada de decisão e da aplicação do decidido dá-se na medida da bitola ética segundo a pergunta recorrente: O que devo e o que não devo considerar no caso passou por análise segundo os princípios da Bioética e expressa adequado paralelismo entre prudência e zelo?
Assim, a integração seleção de benefício, filtragem pela segurança, adaptação à autonomia e atenção à equidade, respeitosa ao questionamento acima, representa maduro ajuste de conduta técnico-científica e de acolhimento a preferências e a valores do paciente, o que evita “descarrilhamentos éticos”.
Em outras palavras, a matéria-prima da conduta recomendável pela Medicina para a doença é moldada em cada doente, sucedendo a conduta aplicável, em função da análise individual de segurança e a conduta consentida, em função dos aspectos da autonomia. Configura-se, ao final, a conduta legítima da bitola ética. O que faz com que a receita médica comporte-se qual escova de dente, cada um deve usar a própria.
Exemplos de ajustes de conduta promovidos pelo raciocínio clínico sensível aos princípios da Bioética para respeito à bitola ética:
1- BITOLA ÉTICA SOB RISCO DE IATROGENIA- Determinado método terapêutico é benefício conceitual para a circunstância clínica do caso. Contudo, ele não passou pelo filtro da segurança dos exames clínico e/ou complementar.
Exemplo: Pretendeu-se elevar a dose de diurético pela persistência de edema no paciente – conduta recomendável pela Medicina. A prudência da observação evolutiva do nível de creatinina no sangue- insuficiência aguda pré-renal- acionou um “paralelo” raciocínio de zelo na manipulação da dose do medicamento- conduta aplicável ao caso.
2- BITOLA ÉTICA SOB RISCO DE CARACTERÍSTICA BIOLÓGICA DO PACIENTE- Determinado método terapêutico é benefício conceitual para a circunstância clínica do caso. Contudo, dado da história pregressa do paciente comprometeu a segurança.
Exemplo: Pretendeu-se aplicar penicilina para tratamento de uma infecção estreptocócica- conduta recomendável pela Medicina. A prudência recomendou a anamnese sobre possível alergia e o zelo, “em paralelo” à positividade da indagação, determinou a prescrição de outro antibiótico – conduta aplicável ao caso.
3- BITOLA ÉTICA SOB RISCO DE INTERAÇÃO MEDICAMENTOSA- Determinado método terapêutico é benefício conceitual para a circunstância clínica do caso. Contudo, o paciente tem necessidade de tomar outros medicamentos.
Exemplo: Pretendeu-se a introdução da varfarina para evitar o tromboembolismo em caso de fibrilação atrial paroxística- conduta recomendável pela Medicina. A prudência recomendou a análise de interação medicamentosa com os demais fármacos em uso. A verificação da prescrição de amiodarona -medicamento que potencializa o efeito do anticoagulante- considerou o zelo de fazer controle laboratorial da anticoagulação oral de modo mais frequente para evitar excessos de dose e consequente efeito hemorrágico – conduta aplicável ao caso.
4- BITOLA ÉTICA SOB RISCO PELO DESEJO DO PACIENTE- Determinado método terapêutico é benefício conceitual para a circunstância clínica do caso. Contudo, apesar da avaliação de segurança no uso, o paciente não deu o consentimento.
Exemplo: Pretendeu-se a realização de um exame complementar para específica confirmação da hipótese diagnóstica mais provável – conduta recomendável pela Medicina, a que o paciente negou submeter-se. O zelo recomendou que o médico fizesse a prescrição terapêutica segundo a conduta consentida, em função dos aspectos da autonomia, a baseada no raciocínio clínico sobre a anamnese, o exame físico e os exames complementares inespecíficos.
5- BITOLA ÉTICA SOB RISCO PELO SISTEMA DE SAÚDE (Equidade)- Determinado método terapêutico (cirúrgico) é benefício conceitual para a circunstância clínica do caso. Contudo, peculiaridades do sistema de saúde impediram a realização eletiva do ato operatório no curto prazo.
Exemplo: Pretendeu-se uma intervenção cirúrgica eletiva para portador de hérnia inguinal. A prudência recomendou a indicação cirúrgica, consentida pelo paciente. A ausência da realização do decidido por questão de vaga hospitalar possibilitou a progressão da história natural e a ocorrência de uma situação de Emergência (encarceramento/estrangulamento). Não ocorreu, pois, paralelismo entre prudência na tomada de decisão e zelo na execução do decidido. A nova condição mórbida sob distinta relação risco/benefíco obrigou à prudência de internação hospitalar imediata e ao zelo na sequente realização do ato operatório.
É essencial ter em mente que não basta ter atitudes de respeito à bitola ética, é necessário considerar um componente do ecossistema da beira do leito que, pela importância ética, deve ser mentalizado como “ser com vida”. Pela função de memória e de testemunha. É o prontuário do paciente. Propriedade do paciente, elaborado pelos profissionais da saúde, guardado pela instituição de saúde, protegido pelo sigilo profissional. Nesta inviolável documentação- verdadeiro diário íntimo do paciente-, o respeito à bitola ética faz-se no registro do praticado, incluindo as justificativas dos desvios do conceitualmente ideal que foram eticamente realizados, em face das individualidades do paciente.