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103-Bioética e Medicina Personalizada

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X indica o limiar baseado em evidência para o início da farmacoterapia (segmento da população elegível para receber a droga indicada pela área sob a curva à direita de X. Y indica o limiar baseado no marketing da indústria para o início da farmacoterapia (segmento da população elegível para receber a droga indicada pela área sob a curva à direita de Y). O deslocamento à esquerda de X para Y reduz a eficácia da droga porque inclui o uso para pacientes com menos risco da doença e menos sintomas graves, daí aumenta o número de pessoas com necessidade de tratar e este excedente aos riscos de adversidade da droga Crédito: Adams SD, Evans JP, Aylsworth AS. Direct-to-consumer genomic testing offers little clinical utility but appears to cause minimal harm. NC Med J 74:494-499, 2013 e Iaonnidis JPA- Genetics, personalized medicine and clinical epidemiology: expectations, validity and reality in omics. J Clinic Epidemiol 2010; 63:945-9.

Tratamento e prevenção são habitualmente guiados pelo diagnóstico.  Exemplo que cabe em ambos é o uso de fármaco redutor de secreção gástrica. A “proteção gástrica” é razão para o uso em gastrite identificada e na prevenção da mesma quando se supõem efeitos agressores de fármacos prescritos à parede do estômago.

Nesta última circunstância, não há, nem evidência que aquele paciente, em particular, virá a sofrer uma gastrite medicamentosa, nem há muita preocupação acerca de adversidades relatadas na literatura. É uma presunção coletivizada, portanto.

Na prática, fica difícil avaliar em qual paciente a droga foi útil e em qual foi fútil. Uma atitude de prudência ou um excesso de zelo ficam como questões teóricas e pesquisas clínicas neste campo associam-se a vieses comprometedores de uma translação para a beira do leito.

É sabido que a mais eficiente terapêutica para uma situação convive com percentual de ineficácia. É a chamada falha de tratamento- etiológico, por exemplo- que é verificada no decorrer do uso. É quando um “segundo melhor” esquema pode substituir o primeiro com sucesso. O período de tempo para a constatação e para a troca pode ter influência negativa no prognóstico.

Por outro lado, a chamada história familiar direciona para possibilidades diagnósticas atuais ou futuras e sustenta certas medidas investigativas e preventivas. Nem sempre, todavia, as pistas “genéticas clínicas” são confirmadas.

Por tudo isso, a individualização é pensamento clínico da atualidade. E a personalização é um otimismo revolucionário que enxerga um futuro de condutas atrelado ao conhecimento do genoma de uma pessoa.

A individualização contém um vigor humano na medida em que, por um lado, modula um benefício presumível pela Medicina em função de aspectos da segurança clínica evidenciada desde o paciente e em que, por outro lado, atende a valores e a preferências do paciente. O marco da individualização é o consentimento – ou não- livre e esclarecido, perante recomendação tecnocientífica validada, sustentado pelo princípio da autonomia.

A personalização visa a acentuar este caráter “intimista”, objetiva eliminar o “prét-à-porter” tanto quanto possível e figura o médico como alfaiate conhecedor das peculiaridades do corpo do cliente.  Ela compõe a Medicina de Precisão, termo que depende da justeza de biomarcadores genéticos em meio ao conhecimento de associações com morbidades. Um grande avanço científico pleno de incertezas clínicas como toda inovação em Medicina.

A Bioética já desenvolve trabalho relevante em relação à individualização, concorrendo para a correta integração entre benefício, evitação de adversidades e respeito a atitudes. Na interface com a Deontologia, ela contribui para o cumprimento da prudência na tomada de decisão e do zelo na aplicação do decidido.

A Bioética cumpre a sua missão de pensar sobre inovações da biotecnologia para a sociedade direcionando suas antenas reflexivas para a Medicina de Precisão. Os  primeiros passos de uma entusiasmante Farmacogenômica – “o fármaco certo, para a pessoa certa, na hora certa” ou de suas analogias para métodos terapêuticos ou preventivos de outras naturezas incluem hesitações próprias de uma curva de aprendizado. O aprofundamento pretendido da individualização, como a verificação da susceptibilidade a uma doença, pode ser garantia de mais benefício com menos adversidade natural ou iatrogênica?  Constituir-se-á um reforço ao pensamento de Hipócrates que valorizava a individualidade e que ao longo dos séculos sofreu a influência da universalidade da Medicina?

A identificação das variações genéticas de pessoas já tem provocado realizações como a seleção de fármaco em função do potencial de adversidade revelado pelo genoma http://www.nejm.org/doi/pdf/10.1056/NEJMoa0706135 ou a retirada de órgão ainda são pelo potencial cancerígeno, como amplamente divulgado na mídia a respeito de uma celebridade.

Um ponto de atenção da Bioética diz respeito à necessidade de se conhecer mais profundamente se o que vale para doenças monogênicas como a Fibrose Cística vale na mesma dimensão para as poligênicas.  Há necessidade de se determinar o nível de confiança na tecnologia do processamento do genoma. Na verdade, o quanto  a Medicina de Precisão é “precisa” na sua base laboratorial de sustentação e superior à Medicina da anmanese, exame físico e exame complementar em época de grande eficiência da imagem. O quanto a validade dos testes poderá se sustentar pela uniformidade de resultados. Há  um alerta atual sobre diferenças dos mesmos entre Laboratórios, inclusive fundamentando conclusões contraditórias http://www.ncmedicaljournal.com/wp-content/uploads/2013/11/74608.pdf.

A Bioética não pode perder a visão que a saúde é uma complexa interdependência entre redes de processos genômicos e epigenéticos , comportamento e ambiente. Neste contexto de interrogação entre ênfase na fisiopatologia de uma doença manifesta e na genética de uma “ainda não doença”, com incertezas sobre falso positivo ou falso negativo, é útil lembrar que o impacto na alocação de recursos determinado pela Medicina de Precisão poderá determinar influências sobre os cuidados rotineiros com os de fato doentes.

A Bioética deve considerar a chamada Inverse Benefit Law em reflexões sobre  a Medicina de Precisão.  Ela surgiu recentemente, 40 anos  após a Inverse Care Law concebida pelo inglês Julian Tudor Hart (nascido em 1927).

http://ac.els-cdn.com/S014067367192410X/1-s2.0-S014067367192410X-main.pdf?_tid=24e1fe38-df7a-11e4-87e5-00000aacb360&acdnat=1428667822_306aff4d2b89843a92db84c869f0ec77.

A Inverse Care Law reza que a disponibilidade das boas práticas em Medicina tende a variar de modo inversamente proporcional às necessidades da população sob cuidado. Hart argumentou, na década de 70, que onde havia mais doentes significava mais  concorrência por pessoal, equipamentos e infra-estrutura do que em  locais mais “saudáveis”, fator de qualidade.

Já a Inverse Benefit Law estruturada por Howard Brody e Donald W Light http://download-v2.springer.com/static/pdf/55/art%253A10.1007%252Fs10654-014-9898-z.pdf?token2=exp=1428661363~acl=%2Fstatic%2Fpdf%2F55%2Fart%25253A10.1007%25252Fs10654-014-9898-z.pdf*~hmac=c1b2e657a4973c483ce09fde69af64d11ff0a3945e5e4891151b0a08d3560874

e inspirada na Inverse Care Law, observa que a relação benefício-adversidade entre pacientes em uso de novos fármacos  varia de modo inversamente proporcional  a quão extensivamente eles são promovidos (marketing). Há 6 bases: a) reduzir o limiar para o diagnóstico das doenças; b) contar com endpoints substitutos; c) exagerar pretensões de segurança; d) exagerar pretensões de eficácia; e) criar novas doenças; f) encorajar o uso off-label.

A Figura acima ilustra como uma variação de X para Y, por exemplo, determinada pelas bases de marketing acima mencionadas, aumenta o número de pessoas que receberão o tratamento com menor chance de benefício e  com manutenção da chance de risco de adversidade. Portanto, um acréscimo de relação risco-benefício indesejável.

Este conjunto de impacto sobre a Medicina de Precisão com tantas esperanças e interrogações poderia causar, pelo menos, em sua implantação, excessos de a) diagnósticos falso-positivos; b)  intervenções preventivas e c) suposições indevidas de adversidades terapêuticas.

Acompanhemos de perto o desenvolvimento deste sonho tendo a Bioética como fórum adequado para análises de pesadelos possíveis.

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