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46-Bioética e curva de aprendizado

learning curve
Curva de aprendizado

A Bioética da Beira do leito tem particular interesse pela chamada curva de aprendizado em Medicina.  O médico brasileiro, na sua graduação adquire  conhecimentos  e  habilidades. Mas é na pós-graduação que ele vai desenvolver mais fortemente a segurança profissional para o diagnóstico e para o tratamento. Tanto no aspecto da perícia, da prudência e do zelo de que trata o artigo 1º do Código de Ética Médica:  É vedado ao médico causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência. Parágrafo único. A responsabilidade médica é sempre pessoal e não pode ser presumida. http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=category&id=9&Itemid=122

A Residência Médica é a extensão da formação  profissional  que permite a prática do mundo real da Medicina interativa com o paciente, com a instituição de saúde e com o Sistema de Saúde.

O Residente de Medicina sabe que recém-formado significa na verdade recém-diplomado, que ele já está autorizado ao exercício profissional porque está inscrito no Conselho Regional de Medicina do seu estado, que ele maneja convenientemente uma série de habilidades que treinou no internato dos últimos anos no hospital de ensino da sua  Faculdade de Medicina, mas que é insuficiente e ele tem muito a aprender e a evoluir ainda, quer no aspecto técnico-científico, quer no aspecto de atitudes na beira do leito.

Sob o ponto de vista da Ética, o atendimento da população por um médico que está em pós-graduação requer  o cumprimento da supervisão rigorosa.  A lei 6932/81 reza que  a Residência Médica constitui modalidade de ensino de pós-graduação, destinada a médicos, sob a forma de cursos de especialização, caracterizada por treinamento em serviço, funcionando sob a responsabilidade de instituições de saúde, universitárias ou não, sob a orientação de profissionais médicos de elevada qualificação ética e profissional. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6932.htm

O jovem  Residente não pode ser uma “mão de obra de menor custo”, colocado na linha de frente sem uma retaguarda pedagógica eficiente.

Há situações onde há tempo para revisões entre o Residente e o seu supervisor, uma anamnese corrigida, um exame físico aperfeiçoado, uma interpretação de exame complementar aprofundada, uma tomada de decisão reformulada e a possibilidade de observação evolutiva do resultado pretendido. Casos clínicos que não urgência/emergência enquadram-se neste perfil com mais facilidade para a retroalimentação do aprendizado tanto do conhecimento lido longe do paciente quanto do orientado perto dele. Assim, eventuais equívocos podem ser corrigidos a posteriori a tempo de evitar danos, como é o caso de ajuste de doses de fármacos, de solicitação de exames complementares faltantes e de lacunas de comunicação com o paciente.

Na circunstância do aprendizado em cirurgia, há o dilema ético a respeito da possibilidade de o noviciado influenciar no resultado pós-operatório pretendido, pois a revisão de excisões e de inserções à semelhança do caso clínico fica obviamente prejudicada.

É sabido como o Residente de cirurgia enfrenta dilemas morais quando o entusiasmo pelo aprendizado da especialidade que deseja e para a qual sente que tem talento se defronta com a primeira vez que se coloca na posição de operador de fato, com as incógnitas de como será  guiado pelo supervisor – e deste como o supervisionado se comportará- e com as incertezas da evolução pós-operatória.  É fundamental que a supervisão dê ao jovem médico a segurança que realizou corretamente o transoperatório e que eventuais intercorrências não sejam imputadas a sua pessoa.

O Residente de cirurgia precisa, pois, estar consciente que cada passo operatório não é somente um fato de momento, necessário para o próximo passo e para o resultado da operação em si, mas que a qualidade do mesmo tem impacto no resultado clínico final,  no curto, médio e longo prazos. Ele precisa do próprio juízo sobre a firmeza do aprendizado já acumulado, e ir “se soltando aos poucos”, combinado com critérios da supervisão.

É fundamental que o aprendizado seja  tempo/supervisão-dependente e que, desta forma, repudie qualquer enquadramento na chamada  “ghost surgery”, que é  a falta de uma orientação direta no campo operatório.

Por isso, os procedimentos cirúrgicos são categorizados para que haja uma curva progressiva de aprendizado do Residente na direção da maior complexidade. Os níveis começam em procedimentos simples como, por exemplo, ressecção de um linfonodo e caminham para traqueostomia, apendicectomia, colecistectomia, lobectomia pulmonar, colectomia total e transplante de órgão, cada um destes procedimentos aqui representando exigências  superiores  da capacidade profissional.  É uma hierarquização de competência e o tempo de Residência costuma ser insuficiente para cumprir todas as etapas. A espiral da curva ascendente prossegue com cada um já cirurgião e que se vale do seu bom senso e do esforço pessoal no alcance da expertise que satisfaz.

Estudo recente que não mostrou diferença entre as taxas de complicação de operados por Residentes  supervisionados e por cirurgiões experientes reforçou que Residente como o cirurgião de fato  não  é  fator de risco independente. Depreende-se, pois,  que a correta supervisão  assegura eticidade sob a óptica técnica.  http://link.springer.com/article/10.1007%2Fs00423-014-1261-z#page-1

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E sob a óptica da atitude?  É habitual que pacientes não sejam informados que serão operados por um Residente em fase inicial de curva de aprendizado. Por mais que haja o conhecimento que se trata de um hospital  com a missão de aprendizado e aperfeiçoamento do médico, que possa haver na entrada do paciente algum tipo de aviso sobre este aspecto, a notícia, no desenvolvimento do pré-operatório, fica, habitualmente, oculta.

Há vários ângulos, sob os quais o tema pode ser refletido. Um deles, que me parece relevante, é que hospitais universitários costumam ser bem avaliados pela população, significando que a sua organização- que inclui a Residência médica- tem credibilidade e legitimidade. Em outras palavras, há o reconhecimento que os responsáveis clínicos e técnicos  cuidam  e reavaliam corretamente o exercício profissional  praticado.

Outro ângulo, é que o paciente teria o direito de conhecer o histórico profissional   de todos aqueles que vão cuidar das suas necessidades de saúde. É um pensamento conceitualmente correto, mas que traz algumas incertezas. Por exemplo, existiria o efeito nocebo em ato operatório, pelo qual a informação de que irá ser o primeiro paciente a ser operado daquela  situação pelo jovem médico poderia elevar a chance de intercorrências pós-operatórias, talvez não objetivas, mas subjetivas? E no caso de insucesso, quais seriam as implicações da falta do esclarecimento e consentimento?

É fato que o paciente SUS – a maioria, portanto- está mais sujeito à curva de aprendizado do Residente.  A Bioética da Beira do leito  entende, neste contexto,  que é dever de cada ser humano envolvido com outro ser humano no atendimento pelo SUS  em seus âmbitos de competência- beira do leito, gestão institucional, política de saúde-  comprometer-se de  modo irrestrito com a sustentabilidade bem qualificada dos processos de aprendizagem  em nível de Residência médica.

Desde Hipócrates (460ac-370ac), cada geração educa a geração seguinte de médicos na mais eficiente sala de aula que é o mundo real da atenção às necessidades do paciente, sempre tendo presente o ensinamento de Aristóteles  (384ac-322ac): É fazendo que se aprende a fazer aquilo que se deve aprender a fazer.

A supervisão adequada evita que o Residente de Medicina derrape na curva de aprendizado!

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