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918- Uma visita de Aristóteles (Parte 1)

Hospital Universitário Luiz Décourt, 7o andar, enfermaria de urologia, visita do assistente com os residentes:

-Então, Sr. José, precisamos tirar a sua próstata, mas preciso lhe alertar que o senhor pode ficar com incontinência.

-O que é isso doutor?

-É a urina ficar  pingando.

– Doutor, não sei não se vou querer.

-O senhor precisa decidir, ou fica com a doença que o senhor sabe muito bem qual é, ou aceita as consequências da cirurgia.  Não quero que o senhor depois fique dizendo que não sabia.

– Professor!? Ali na porta, não é aquele grego que apareceu num slide daquela aula chata de Bioética da semana passada?

– É ele mesmo… Aristóteles?

-Você me chamou?

-Mas que prazer ter o senhor aqui? O que faz no hospital?

-Cuido da minha imortalidade, com tanta doença nova que não tinha no meu tempo, preciso me prevenir, a imortalidade dá imunidade para o que se viveu…

-É curioso precisar morrer para se tornar imortal.

– O maior problema de passar a viver nos livros era as traças, incomodava muito, também o pó das bibliotecas, muita alergia, mas agora melhorou muito, vivo numa nuvem de não sei quantos gigas, não que já não vivesse nas nuvens, você me entende, né…  pensar exige muita abstração, lá na Grecia diziam que fiquei careca de tanto pensar.

– O senhor frequenta o ambulatório de geriatria?

-Frequentava, eles me expulsaram porque os pacientes reclamaram que eu ficava na sala de espera dando lição de moral para todos… mas eu sou professor de filosofia.

-O senhor conheceu Hipócrates?

-Sim, quando eu nasci o Hipócrates estava com 75 anos e foi o meu pediatra, ele estava acabando de escrever o juramento. Ele teve muita coragem para brigar com os deuses, mas foi esperto, jurou por Esculapio, Higeia, Panaceia e por todos os deuses e deusas.

-Interessante, a medicina defensiva é mais antiga do que eu pensava.

-Aliás, de vez em quando trocamos umas ideias pela rede social dos imortais. Ele tem muito orgulho de ser o Pai da medicina, mas nunca me respondeu quem é a mãe, diz que é sigilo profissional.

-O papo de vocês dois deve ser excitante!

-Produzimos muito graças a muita gente que não nos esquece, nosso curriculum mortem cresce todos os dias. Mas vejo que estão aí numa reunião, me lembra a peripatética, todos de branco andando de um quarto para outro.

-Estamos aqui com o Sr. José, ele precisa fazer um procedimento e estamos explicando para ele, ele tem que consentir.

-Claro, sempre defendi a autonomia.

-O Sr José está com dificuldade de concordar por causa do potencial de provocar um dano.

-Normal, lógica é sempre complexa… Toda operação esconde intrusos, é um cavalo de Troia.

– Eu nunca escondo dos pacientes.

-Se você me permitir…

-O senhor pode nos ajudar?

– Posso tentar … Meu quadrado de oposição não tem erro… São séculos de experiência.

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