PUBLICAÇÕES DESDE 2014

55-O prescritor, o receptor e o fornecedor

BMJ
British Medical Journal Maio de 2003

 

 

Quando eu li a reportagem recente da revista VEJA  de 24 de dezembro de 2014 sob o título Três Stents e uma Viagem veio à mente a capa do British Medical Journal de 31 de maio de 2003, inesquecível, síntese de artigos então publicados.

Eu estava no começo do meu interesse pela Bioética e causou-me forte emoção  ver a minha categoria profissional  representada por suínos que engordam, se educam e se divertem às custas de um  réptil de aparência ardilosa, a industria farmacêutica, que preenche cheques, custeia refeições e viagens de lazer e educação e é onipresente.  Como o bioamigo pode perceber na imagem que aqui reproduzo, há uma cobaia ligada ao soro, excluída da “festa”, a um  canto da mesa, que eu não preciso dizer quem seja.

O editorial  No more free lunches deste número da revista traz mensagem forte: “… Médicos tornaram-se dependentes da Indústria de uma maneira que enfraquece  a independência e a capacidade de fazer o melhor pelo paciente…”.

Um dos entendimentos da Bioética é o  imperativo moral que o paciente precisa estar plenamente seguro que as decisões tomadas pelo médico  não  sofrem nenhuma influência indevida da Indústria, quer a farmacêutica, quer a de dispositivo, como órtese e prótese.

A inovação  biotecnológica e a continuidade sustentam benefícios inegáveis para as necessidades clínicas e devem ser valorizadas em seus aspectos comerciais. A questão moral não é a produção e a disponibilização de métodos terapêuticos dentro dos padrões do mercado, e sim a promoção por caminhos tortuosos que pode comprometer a segurança da aplicação e desrespeitar a beneficência e a autonomia.

Há décadas o tema do impacto anti-ético de promoções indevidas no ambiente de atuação do  médico  é recurrente, com acusações e defesas observadas em vários países.  Há o paciente, há o médico e há o método ligado à Indústria. Nenhum dos três pode dispensar um deles quando o tratamento exige mais do que mudanças simples de hábito individual. O progresso da Medicina, a maior expectativa de vida, a mais adequada qualidade de vida dependem de introduções no corpo do paciente, ora um fármaco que vai combater um agressor bacteriano, ora uma prótese que vai fazer as vezes de um tecido natural desgastado.

O vínculo prescritor médico-paciente é regulado pela Ética Médica e o vínculo do método da Indústria com os cuidados com a saúde admite uma lógica comercial. O médico não pode apregoar que é melhor do que o colega a fim de captar clientela.  Ele – ou um Serviço- não pode  apresentar um trabalho estatístico comparando seus resultados com os de colegas-ou outro Serviço. Veladamente, na discussão, pode-se até mencionar superioridade em relação a  publicação de outro Serviço, mas o fulcro é a eficiência do método em questão.

A Indústria relacionada a cuidados com a saúde não costuma  apresentar comerciais na mídia promovendo o uso, salvo alguns de receituário livre que terminam com o “ao persistirem os sintomas o médico deverá ser consultado”. Ela apresenta suas opiniões sobre a qualidade do produto em recintos estritos, melhor se por meio de dados científicos.  Representantes trazem informações diretamente ao médico e cabe a este admiti-los ou não confiáveis consultores farmacológicos. Há o não mensurável, como a convicção do médico que tal classe de fármaco ou tal tipo de dispositivo,  validados, são mais eficientes, baseado na  própria experiência.

A Bioética da Beira do leito dá crédito de confiança ao Ontológico – vem de dentro do médico o seu compromisso com as boas práticas da Medicina- e é esperançosa da  desnecessidade de aplicação do Deontológico  acerca do é vedado ao médico expresso no Código de Ética Médica vigente.

Há cerca de 70 anos, a preocupação era  que o médico não estabelecesse o seu consultório no mesmo pavimento  de uma farmácia- Código de moral médica (1929) http://portal.cfm.org.br/images/stories/documentos/EticaMedica/codigomoralmedica1929.pdf.  

Hoje, a  declaração de potencial conflito de interesse visa à transparência de eventuais vínculos, mas ela  é complexa na medida em que a neutralidade  vai depender do ontológico, que a declaração, por si, não pode assegurar. Há 16 admitidas modalidades de envolvimento, neste contexto, e em algumas delas fica complexo assumir conflito de interesse:

1. Receber visita de representantes de indústria farmacêutica
2. Aceitar diretamente presentes como equipamento, viagem ou acomodação
3. Aceitar presentes indiretamente através de patrocínio de viagem
4. Comparecimento em jantares patrocinados e em eventos sociais ou recreativos
5. Comparecimento em eventos educativos patrocinados, educação médica continuada , workshops ou seminários
6. Comparecimento em conferências científicas patrocinadas
7. Posse de ações da Indústria
8. Condução de pesquisa patrocinada
9. Financiamento para escolas médicas, cátedras acadêmicas ou locais para palestras
10. Membro de sociedades e associações profissionais patrocinadas
11. Consultoria em fundação sobre doença ou grupos de pacientes patrocinados
12. Envolvimento com diretrizes clínicas patrocinadas
13. Consultoria paga para a Indústria
14. Membro de boards de consultoria, líder de opinião e palestrante
15. Ser autor “fantasma” de artigos científicos
16. Participação em propaganda em revistas médicas, separatas pagas pela Indústria e suplementos patrocinados

Os simpósios satélites, por exemplo,  são costumeiros em Congressos, provocam filas enormes em horário onde os lanches são bem-vindos. Eles expõem dois tipos de informação: a que está na literatura e, portanto, submetida a crivos editoriais e a referente a pontos de vista individuais, subentendendo-se que o palestrante vocaliza o que de fato  aprendeu pela própria vivência.

Vale aqui lembrar o  Art. 42 §2º da RESOLUÇÃO – RDC Nº 96, DE 17 DE DEZEMBRO DE 2008 http://portal.anvisa.gov.br/wps/wcm/connect/076f3080492dd932afe8bf14d16287af/Legislacao_Propaganda_Consolidada_marco_2011.pdf?MOD=AJPERES que dispõe sobre a propaganda, publicidade, informação e outras práticas cujo objetivo seja a divulgação ou promoção comercial de medicamentos:  Os palestrantes de qualquer sessão científica que estabeleçam relações com laboratórios farmacêuticos ou tenham qualquer outro interesse financeiro ou comercial devem informar potencial conflito de interesses aos organizadores dos congressos, com a devida indicação na programação oficial do evento e no início de sua palestra, bem como, nos anais, quando estes existirem. 

O motor da inovação terapêutica, conforme nos ensinou o colega Dr. Jorge Safi Jr.  na figura abaixo é compreensível. Cada componente precisa ser analisado, contudo,  em função de vínculos com os médicos.  As relações entre médicos e Indústrias ligadas aos cuidados com a Saúde  são  construtivas e cooperativas, mas  não se pode  ignorar o potencial de desrespeito e de malefícios. A discussão é ampla e não pode ter um caráter reducionista, maniqueísta mesmo. O atendimento às necessidades clínicas  dentro das boas práticas técnicas pode compreender interpretações eticamente distintas sobre a eticidade de comportamentos.

No Brasil, a Bioética constitui fórum  útil  para o desenvolvimento de  processos educativos sobre o vínculo médico-Indústria e, em decorrência, para a redução da necessidade de ações investigativo-punitivas éticas  e legais, ipso facto,  para a preservação da imagem de dignidade do médico brasileiro perante a classe e a sociedade.

 

 O MOTOR DA INOVAÇÃO TERAPÊUTICA

 

Picture4

COMPARTILHE JÁ

Compartilhar no Facebook
Compartilhar no Twitter
Compartilhar no LinkedIn
Compartilhar no Telegram
Compartilhar no WhatsApp
Compartilhar no E-mail

COMENTÁRIOS

2 respostas

  1. Caro Dr Max,

    Muito oportuno o tema, realmente é um cenário intricado. O CFM e a ANS já editaram resoluções acerca da possibilidade de modificação na prescrição de OPME. Em interessante debate na GV Saude debatemos o tema, disponível no link abaixo:
    http://gvsaude.fgv.br/sites/gvsaude.fgv.br/files/debates15.pdf
    É interessante destacar que a própria maneira de remunerar médicos, pagos por procedimentos, predispõe à pratica conflituosa (delituosa), isso suscita a realização de exames ou tratamentos com indicações limítrofes ou desnecessárias. Há também, como ressaltado, os interesses dos provedores de saúde que não querem arcar com o ônus de terapias caras. Destaque-se que médicos, clínicas e hospitais são credenciados pelas operadoras para prestação de serviços, e até em serviços próprios, e mesmo assim não está assegurado a justeza das indicações. O paciente é parte hipossuficiente e não tem todos elementos para tomar uma decisão livre e esclarecida sobre a realização de procedimentos médicos.

  2. Esse tema veio de encontro com o tema exibido ontem no Fantástico.
    Uma verdadeira mafia!!!
    Lamentável!
    Parabéns pelo artigo.

    <>

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

POSTS SIMILARES