A parte I https://bioamigo.com.br/?p=4884 deixou evidente o desequilíbrio entre a baixa disponibilidade pelo médico e o alto crédito da sociedade a respeito da eficiência dos recursos para cuidar do doente ao longo de séculos. A autoridade de médico estava muito mais centrada na sua atitude presencial de acolhimento ao paciente do que nos instrumentos técnicos para influenciar expressivamente a história natural das moléstias.
Nesta segunda parte, apresentamos algumas curiosidades sobre o desenvolvimento de benefícios terapêuticos a partir do acaso, do inconformismo com uma declaração de mau prognóstico e da simbiose de um povo com bens naturais.
O marinheiro estava péssimo. Os demais decidiram desembarcá-lo para que morresse em terra. Rastejando, ele reuniu as derradeiras forças e chegou ao campo de capim. Dele se alimentou. Ficou curado!
Não há registro de como ele teria sido resgatado, mas, de alguma forma, a ingestão de vegetal contendo vitamina C chegou até o britânico James Lind (1716-1794). É dele a publicação que recomenda o uso do suco de limão em viagens marítimas para evitar o escorbuto.
É de se destacar que por cerca de 40 anos o Almirantado britânico não acreditou que algo tão simples como fruta cítrica poderia ser mais eficiente do que um “Antiscorbutic Golden Elixir“.
Cerca de 150 anos depois, o húngaro Albert Szent-Györgyi (1893-1986) deve ter pensado muito no marinheiro que comeu capim quando recebeu o Prêmio Nobel de Medicina(1937) por seus estudos sobre o ácido ascórbico( vitamina C).
O agente postal é o francês Edme-Gilles Guyoy que no século XVIII, tendo sido desenganado pelos médicos sobre a surdez, resolveu estudar a anatomia do ouvido. Dirigiu-se à Biblioteca Municipal, consultou vários livros de anatomia e aprendeu sobre a ligação do ouvido médio com a nasofaringe. O insight aconteceu: o ar que normalmente preenche a trompa é essencial para a boa audição.
Convencido que a sua surdez era causada por entupimento da trompa de Eustaquio pelo catarro que habitualmente lhe incomodava, pensou numa solução. O processo criativo que já desenvolvera os necessários encontro e envolvimento culminou com a concepção de uma forma original de desentupir. Guyoy construiu um tubo curvo revestido por borracha, “cateterizou” a própria trompa -não há registro do lado do corpo- e acoplou uma bomba. Após as devidas compressões e lavagens, o agente postal foi recompensado pelo esforço construtivo em prol do próprio futuro: a audição normal foi restabelecida! Acabou conferencista na Academia Francesa de Ciências, capaz, evidentemente, de ouvir as inúmeras perguntas dos cientistas impressionados e as repetidas palavras elogiosas.
O jesuíta é um religioso que teria estado entre os incas no Peru. Após contrair malária, ele foi curado com um chá da casca de uma árvore. Verificou-se, depois, que a casca provinha de um arbusto denominado de cinchona. O nome quinino é simplificação do termo original e a droga foi introduzida na Europa no século XVII como “casca do jesuíta” com a pomposa apreciação: “… O quinino está para a Medicina como a pólvora está para a guerra…”. Soberanos foram curados e médicos tornados Cavaleiros pelo benefício do quinino.
Este conhecimento histórico-farmacológico traz alguns ensinamentos. Dentre eles destaco:
- A apreciação da expectativa da mudança de ausência para presença de um benefício para determinada doença funciona diferente daquela acerca de inovações superiores às existentes. Um dos efeitos em nossos dias é a possibilidade do uso de placebo em pesquisa que não causa nenhum prejuízo a este grupo controle e, em contraponto, a inconveniência do seu uso como controle de inferioridade/não inferioridade/superioridade da pretensa inovação em relação a um fármaco já validado e utilizado com algum grau de benefício terapêutico.
- Em meio à carência de recursos benéficos, o aspecto hipocrático da não maleficência tende a ser deixado em segundo plano. Percentual de pacientes com diagnósticos com mau prognóstico e ausência de benefícios validados aceitam participar de pesquisas clínicas ou consentem em receber tratamentos não exatamente validados para a sua situação clínica.
- Medidas terapêuticas simples, relacionadas especialmente a hábitos de vida, não devem ser motivo de depreciações apriorísticas. Se por uma lado é função da ciência explicar a Natureza, por outro é sensato dar crédito a sugestões da mesma Natureza.
- O poder de observação do leigo, especialmente se portador de doença crônica que lhe instrui constantemente, o conhecimento “off-road” de segmentos da população e os efeitos da procura de “segundas-opiniões” por iniciativa própria multiplicados pela internet não devem ser rotineiramente menosprezados, há inteligência fora de Diretrizes… Obviamente, qualquer endosso é vigorosamente exigente de filtros com poros científicos os mais seletivos possíveis.
- A adversidade ao medicamento ligada a causa-mortis pode resultar camuflada pelo conhecimento da fatalidade inexorável dada pela história natural. É sabido como hoje fica difícil diferenciar o grau de cada influência letal em determinadas pesquisas.