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950- So…mente uma mentira (Parte 4)

Voltando à nossa realidade e a metáforas mais habituais, a vida do profissional da saúde é um álbum de figurinhas. Há páginas previstas,Album há páginas que vão sendo acrescentadas de modo peculiar, há figurinhas fáceis, repetidas e há as difíceis, as carimbadas.

Algumas figurinhas retratam a não revelação de fatos antecedentes, perfeitamente conhecidos pelo paciente e cujas ausências podem desviar o raciocínio clínico/atitude do profissional da saúde.

Traumas e traumatismos, detalhes da vida sexual e desistências do cumprimento da prescrição médica são ilustrativos. As maneiras como (não)são apresentados podem acionar a intuição profissional dados etiopatogênicos possam estar sendo omitidos. Todavia, eventuais reforços negativos do paciente em resposta a questionamentos do médico visando ao esclarecimento traz inibições morais sobre insistências, por mais que haja a prudência de se expressar com Tem certeza? em vez do violento soa uma mentira.

A atualidade da beira do leito  requer um pisar em ovos, uma cautela atitudinal que não era valorizada há algumas décadas em que o paciente era, muitas vezes, constrangido como um mentiroso porque a falta de efeito era impossível. Lembro-me de um caso lamentável em que a mãe foi acusada pelo médico de não dar varfarina para o filho porque o INR persistia próximo de 1,0 e que, alguns dias após a investigação hematológoica revelou que se tratava, na verdade, de uma resistência genética à varfarina que requeria maior dose prescritiva.

Ilustrando, no primeiro destes cenários, o paciente diz que escorregou embora haja evidências suplementares de agressão e uma implicação da indeterminação sobre o trauma e  o traumatismo será a perda da oportunidade para uma providência social no entorno da denúncia a que se refere o Art. 25 do Código de Ética Médica (2018): É vedado ao médico deixar de denunciar prática de tortura ou de procedimentos degradantes, desumanos ou cruéis, praticá-las, bem como ser conivente com quem as realize ou fornecer meios, instrumentos, substâncias ou conhecimentos que as facilitem; no segundo cenário, a paciente nega atividade sexual recente ao apresentar um quadro de abdômen agudo que num sequente exame de imagem fica identificada prenhez ectópica; no terceiro cenário, a falsa consideração de paciente já exaustivamente medicado para hipertensão arterial sistêmica faz aplicar um mais arriscado e custoso protocolo para refratariedade farmacológica.

Este trio de exemplos sobre escamoteamento da verdade na anamnese revela como podem ocorrer descumprimentos involuntários do Princípio fundamental II do Código de Ética Médica (2018): O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional. 

Entretanto, só mente de fato quem sabe a verdade. Por isso, há a conjectura que a não verdade não representa uma mentira, é o que se pensa mesmo. Um exemplo é a situação de anamnese em que o paciente se declara assintomático, sinceramente.

Uma das implicações da verbalização da presença ou da ausência de sintomas é quando a manifestação inclui-se em critério para intervenção terapêutica. No campo da doença valvar, por exemplo, é divisor do raciocínio sobre necessidade atual de procedimento corretivo da hemodinâmica local.

Não infrequente, o autodenominado assintomático é paciente que atribui sintomas a outras circunstâncias pessoais ou até passou a evitar certa situação desencadeadora. Por isso mesmo, o foco na qualidade de vida e não no sintoma pode trazer ajustes mais beneficentes ao raciocínio clínico sobre  a conduta  a ser recomendada.

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