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CB37- COVID-19 e desigualdade social. O principialismo é suficiente?

MasbDr.Marco Aurélio Scarpinella Bueno

Cama de gatoO escritor norte-americano Kurt Vonnegut (1922-2007) inicia seu livro Cama de Gato com a frase “Nada neste livro é verdadeiro”. Parafraseando o reverenciado autor poderia usar “Tudo neste texto é incerteza”.

Passados mais de quatro meses de isolamento social é possível tecermos alguns comentários sobre o SARS-Cov-2, o vírus causador da COVID-19. Apesar de ter sido descrito originalmente na província de Wuhan na China, filosoficamente o SARS-Cov-2 está mais para os gregos antigos que para Confúcio (551 ac – 479 ac). Explico.

É um vírus chegado aos Socráticos (Sócrates, 470 ac-399 ac), a quem o aforisma “só sei que nada sei” é creditado. Não é mais ou menos assim que estamos lidando com o tratamento da COVID-19 apesar de todos os avanços científicos que foram feitos sobre a doença em tão curto espaço de tempo?

Chegou no Brasil de avião causando doença primeiro em quem voltava da Europa, mas logo depois atingiu os mais pobres e vulneráveis. E no atual momento tem deixado as grandes cidades para se aventurar pelo interior do país. Dados oficiais já indicam que 1% da população brasileira está infectada, mas como testa-se pouco no Brasil os números podem ser muito maiores que os registrados.

Análise da Prefeitura de São Paulo mostra que até o final do mês de julho pelo menos 11,1% dos moradores (ou 1,32 milhão de pessoas) contraíram o novo coronavírus. Os “fatores de risco” foram relacionados à pobreza, vulnerabilidade, menor renda e maior número de moradores no domicílio.

A prevalência foi maior entre indivíduos da raça parda, que nunca estudaram (a chance de ficar doente é duas vezes maior em quem tem o ensino fundamental contra quem tem curso superior) e com renda nas faixas de classes D e E (incidência de ficar doente quatro vezes maior que na classe A).

O 4° Boletim – COVID-19 do Município de São Paulo (https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/saude/COVID19_Relatorio_SItuacional_SMS_20200529.pdf) mostrou que as maiores taxas de óbitos por número absoluto foram observadas em bairros periféricos como Brasilândia (Zona Norte) e Sapopemba (Zona Leste). Mapa Se a análise dos óbitos for feita de forma proporcional (por 100 mil habitantes) bairros como Pari, Belém e Brás passam a liderar o ranking. Apesar de serem bairros centrais concentram a maioria dos cortiços de São Paulo, além de possuírem grande quantidade de indivíduos em situação de rua.

Em resumo. O fator desigualdade social é um fator de risco para mortalidade por COVID-19.

É uma característica da bioética principialista concentrar-se na relação médico-paciente e priorizar o indivíduo, especialmente ao enfatizar a autonomia e combater o paternalismo (afinal de contas são características da medicina made in USA). Mas durante a atual pandemia não foram poucas as opiniões de que o principialismo possa não ter abrangido de forma satisfatória as preocupações da sociedade, o que faz que seja importante avançarmos no campo da bioética social.

Como recentemente assinalaram as presidências do American College of Physicians e da American Medical Association (Fincher JW & Harris PA A wake-up call for healthcare: emerging ethical lessons from COVID-19. Joint letter from the American College of Physicians (ACP) and the American Medical Association (AMA) June 16, 2020): “Certamente, no meio de uma crise, as ferramentas de alocação de recursos que orientam as decisões de pacientes individuais não podem, por si só, corrigir problemas profundamente enraizados, especialmente determinantes estruturais e sociais que geram iniquidades de saúde de longa data.

Nivelar o campo de jogo exigirá esforços coletivos sustentados para mudar não apenas como a sociedade se prepara para emergências de saúde pública, mas fundamentalmente como o atendimento ao paciente é organizado e prestado, movendo-se em direção a um sistema que cuide de todos e desafie diretamente as iniquidades nosso sistema atual”.

Médicos bioeticistas por todo o planeta publicaram registros de suas angústias ao perceber que talvez a bioética possa ter falhado em realizar sua responsabilidade social. A percepção de que a COVID-19 é particularmente devastadora para os pacientes que já sofrem com as mazelas de uma atenção primária à saúde inadequada é igualmente trágica tanto em Ananindeua no Pará, quanto no bairro do Bronx em Nova Iorque. Serviços de saúde que cronicamente já contavam com poucos recursos para a assistência primária viram seus pacientes com hipertensão arterial mal controlada, obesidade e diabetes serem particularmente afetados pela COVID-19.

Relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) de dezembro de 2019 aponta o Brasil como o sétimo país mais desigual do mundo, ficando atrás apenas de países do continente africano. Apesar de ser inegável que ao longo das últimas décadas o IDH (índice de Desenvolvimento Humano) do Brasil vem aumentando (era 0,761 em 2018, o que o coloca em um ranking de alto desenvolvimento humano – 79o posição entre os 189 avaliados pela ONU) – Quanto mais próximo de 1 melhor o IDH. IDHPaíses com muito alto desenvolvimento humano tem IDH > 0,800. O da Noruega, líder deste ranking, é 0,954-, quando se faz o ajuste em relação às desigualdades sociais percebe-se que o IDH cai 24,5%.

Isto significa que apesar da melhora nos níveis básicos de saúde, educação e padrão de vida, as necessidades de muitas pessoas continuam sem ser atendidas. E pior. Coloca em risco que uma próxima geração de desigualdades se inicie.

Não é novidade que os mais pobres continuam a ser mais vulneráveis. A pandemia da COVID-19 só tem escancarado este dado. Quem é mais pobre tem mais chance de pegar o vírus não apenas na cidade de São Paulo. Pobres e negros morrem duas vezes mais da COVID-19 no Bronx do que em Manhattan. Joseph Fins  (Fins J Covid-19 Makes Clear that Bioethics Must Confront Health Disparities BioethicsCovid-19, 2020), Professor de Ética Médica da Universidade Cornell, foi categórico.

Ao priorizarmos a autonomia, a busca pelos outros princípios ficou em segundo plano. Negros, pobres e analfabetos morrerem mais por COVID-19 é consequência do racismo estrutural na medicina e de políticas de saúde falhas. Os bioeticistas têm que ir além da questão da escolha do paciente, especialmente quando um indivíduo privado de direitos não está em posição de exercer tal escolha.

Tão importante quanto focar nas consequências agudas da pandemia é reconhecer os problemas estruturais que já existiam antes da COVID-19. Agora é hora da bioética ampliar seu olhar e entender que direitos sem oportunidades resultam em nada.

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