É preciso ser humano para haver medicina é frase ao estilo de Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly (1895-1971), o famoso Barão de Itararé, jornalista e precursor do humorismo político no Brasil.
Um suposto AVC sem sequelas aos 23 anos de idade fez desistir da intenção de se formar em medicina, estava no quarto ano da faculdade. Teria revestido a beira do leito com uma bem humorada e terapêutica comunicação médico-paciente. Teria imunidade natural ao burnout. Nada da sisudez do magiter dixit da primeira metade do século XX, época de muitos conceitos, escassa tecnologia e nenhum impacto sobre o prognóstico.
O sentido duplo do É preciso ser humano para haver medicina persiste atemporal embora cada vez mais exigente de esforços de preservação. A Bioética propõe-se a tal continuum e a missão de certa forma reproduz a tenacidade exalada da biografia do Barão de Itararé.
A Bioética da Beira do leito adotou a resposta realista e otimista que o Barão de Itararé deu quando foi acusado de não ter futuro: futuro eu tenho, o que não tenho é presente.
Em outras palavras, a Bioética de Beira do leito entende que os profissionais da saúde são como células-tronco totipotentes e endossa o dito por Sir Winston Churchill (1874-1965) aos 80 anos de idade: Sou um otimista, não parece haver utilidade em não ser.
A disponibilidade deste construto comportamental indutor de auto-estima, bem-estar e sucesso profissional ajuda a trabalhar o ambiente da beira do leito vendo atingíveis a diferenciação desejável. Nada mais antagônico às ciências da saúde na beira do leito do que a imutabilidade e a durabilidade pessimistas sobre os males de saúde. A carência da crença positiva sobre objetivos clínicos anula esperanças e tende a movimentos de desistências e a sentimentos de culpa. A citada diferenciação tem metas cognitivas e emocionais e começa a se realzar no primeiro ano da faculdade, cresce em abrangência e profundidade na residência profissional e nunca termina.
Os processos mentais desenvolvidos na beira do leito contemporânea articulam-se com exigências da medicina baseada em evidências, respeito ao direito de consentimento – ou não- pelo paciente e preocupações com adversidades.
Estes aspectos interligam-se por substratos morais, éticos e legais. Estão em muitos textos para serem apreendidos, mas, também, no interior de cada um, como bagagem pré-profissional, caráter e temperamento. Fazendo ajustes pelos 90 anos passados, o conteúdo do artigo 19º do código de moral médica de 1929 persiste um ponto de referência na beira do leito: O médico deverá sempre ajustar suas conduta às regras da circunspeção, da probidade e da honra; ser um homem honrado no exercício da profissão assim como nos demais atos da sua vida. A pureza de costumes e os hábitos de temperança são também indispensáveis ao medico, porquanto sem um raciocínio claro e vigoroso não poderá exercer acertadamente o seu ministério, nem mesmo estar aparelhado para os acidentes que tão a meudo exigem a rápida e oportuna intervenção da arte.
Pela curiosidade histórica, aproveito para informar aos colegas mais jovens que exerci a medicina durante vários anos pós-formatura sem desenvolver uma articulação mental entre medicina baseada em evidências, respeito ao direito de consentimento – ou não- pelo paciente e grandes preocupações com adversidades, simplesmente porque a tríade inexistia do modo ordenado de hoje.
Entretanto, asseguro que o espírito embutido nesta associação já permeava minha relação médico-paciente, creio que fruto da qualidade do ambiente universitário de excelência que frequentava. A essência da tríade calava fundo na crítica em busca da excelência. A irriquietude que ajuda a construir o narcisismo benigno que precisamos para confiar em nossa imagem profissional e nos autorizar a apresentá-la como cartão de visita (Princípio fundamental XXVI do Código de Ética Médeica vigente: A medicina será exercida com a utilização dos meios técnicos e científicos disponíveis que visem aos melhores resultados).
Sentia a vontade de poder desempenhar uma função e entendia os primórdios da tríade um bem verdadeiro em relação às necessidades do paciente e não percebia nenhum sinal de rejeição por parte dele. Havia um itinerário para as tomadas de decisão, absorvido, fundamentalmente, dos professores e livros, mas atento a certos vieses “mais transgressores” de uma nova geração. Benefícios eram incertos mas não eram males certos porque as individualidades contavam muito.
Sem desrespeito à liturgia da beira do leito, podemos simplificar que a medicina baseada em evidências orienta sobre a utilidade de métodos do acervo qualificado da medicina, o consentimento expõe se o paciente entende a utilidade como útil e a preocupação com a adversidade compete com a apreciação sobre utilidade/útil. A prudência amálgama este contexto tripartite. Esclareça-se que foi a partir do Código de Ética Médica de 1988 que imperícia, imprudência e negligência passaram a dominar a linguagem antiética e contribuíram para maior valorização da deontologia na beira do leito.