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609- A lei de Putt, o anverso e o reverso (Parte 2)

A roda viva do progresso da medicina motiva sequentes renúncias dos médicos a métodos onde são competentes e direcionamentos para inéditas curvas de aprendizado, vale dizer, um turnover de habilidades à disposição do paciente. A cada momento estará havendo algum aprendizado que se mostra alinhado com a metáfora do copo meio cheio/meio vazio, ou seja, quando o médico não estará nem exatamente incompetente nem já com plenitude de  competência. Esta calibragem traz implicações no emergente contexto dos cuidados da saúde baseados em valor.

Todavia, não é generalizável uma garantia que incompetências do noviciado tornem-se competências da experiência. Nem sempre os cenários práticos se prestam para a progressão almejada da curva de aprendizado e verificam-se platôs de indesejável estagnação dos conhecimentos e das habilidades. É o caso de oferecimentos de Residência Médica destituída da supervisão qualificada que não oferece os degraus  necessários para a ascensão das competências, a razão pós-graduação. É ilustrativa, também, a situação em que uma oportunidade de trabalho para o jovem médico junta-se ao imediatismo profissional e o aqui e agora predomina sobre um planejamento visando a um prazo mínimo de real ganho de experiência. Privilegia-se o líquido que não vai constituir uma forma, uma solidez. Muitas vezes, incide a força do efeito manada. Necessidades financeiras também. Recentemente, ouviu-se falar de oferecimento de vagas para jovens médicos atuarem em consulta centers sentados em frente a um computador para via eletrônica emitir diagnósticos, prescrições e atestados para imagens de pacientes. Estes cantos de sereia incluem-se nas preocupações da Bioética da Beira do leito.

Recentemente, o médico viu-se instado a ampliar curvas de aprendizado em saberes que não são exatamente das ciências da saúde, mas ganharam a sua intimidade. Todos conhecem os 5 C inseparáveis do médico contemporâneo: caneta, carimbo, crachá, computador e celular. A tecnologia da informação e da comunicação só não fica pendurada no pescoço do médico porque não se ajeita ao formato como o estetoscópio. Ainda bem porque o médico não deve transparecer uma figura de tecnocrata na beira do leito essencialmente humana e social.

Pensar em tecnocrata bem sucedido remete-nos a um autor que se declarou um sociólogo da organização interessado na relação entre alta tecnologia e hierarquia e que por razões pessoais preferiu usar o pseudônimo de Archibald Putt (não se sabe seu nome verdadeiro). Ele dispôs-se a promulgar a lei que leva o seu nome, evidenciando um conhecimento da condição humana, especialmente sobre atitudes e relacionamentos profissionais carentes de lógica. A lei de Putt reza que a tecnologia é dominada por dois tipos de pessoas: as que a entendem mas não a manejam e as que a manejam mas não a entendem. Em seu sarcasmo, ele supunha que a maioria no campo da aplicação da tecnologia nem entendia nem sabia manejar além da página 2- mas tinha mais chance de promoção. Evidentemente, desde a década de 70 do século passado, quando realizou a publicação, a tecnologia se transformou, mas a lei ainda se mostra vigente, desafiando o valor do mérito.

Conhecer a lei de Putt é útil  para o médico na medida em que explica certas distorções na carreira, mas, principalmente, para reforçar que maior eficiência, maior flexibilidade e maior produtividade beneficiam-se do compartilhamento das competências em grupo, pois reduz os efeitos das incompetências individuais – incluso as do eventual líder- por ignorar da página 3 em diante, que algum outro membro domina. A equipe interativa torna-se a unidade natural para atividades clínicas habituais da beira do leito. Elimina muito magister dixit pelo não reconhecimento dos seus limites de competência. 

Na Cardiologia, por exemplo, o Heart Team valoriza o alerta da lei de Putt e procura superá-lo a fim de equalizar o valor de cada participação para o sustento de conduta no máximo da competência. A interdisciplinaridade praticada na beira do leito com bom juízo das próprias possibilidades de expansão e das limitações tecnocientíficas soma competências e diminui incompetências, inclusive as não tecnológicas. É quando dividir- saberes- multiplica -habilidades, uma eliminação da natural contradição alinhada á tradição hipocrática. Com o passar do tempo, cada membro da equipe interdisciplinar sabe um pouco mais sobre a competência do outro e o produto final- uma decisão- tende a ser mais beneficente e menos maleficente para o paciente. Se a clínica ainda conserva a soberania em muitas circunstâncias, a realidade de mais de meia centena de especialidades médicas e áreas de atuação dá autoridade interdisciplinar.

O determinismo tecnológico contemporâneo traz para a beira do leito inúmeras conjecturas sobre a convivência das inteligências natural e artificial. A Bioética da Beira do leito opina que ambas possuem competências e incompetências que deverão se integrar.

Medicina é uma só, não importam conjugações de prefixos -telemedicina- ou apostos – medicina baseada em evidências. Altera-se a conexão mas não a sintonia entre medicina, médico e paciente- idealmente.  Coragem para aplicar novos rumos e perseverança para alcançar o mesmo destino.

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