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536- Mídia social na conexão médico-paciente, aproximando proteção, afastando embaraço (Parte 2)

É da história da Medicina que os meios de comunicação do médico com a sociedade de modo geral e mais especificamente com pacientes, colegas e partícipes do  sistema de saúde são constantemente ajustados a reboque da aplicabilidade da tecnologia disponível. O telefone fixo foi um marco e, curiosamente, não relato que tenha suscitado inquietudes éticas, inclusive, nenhum dos oito códigos de ética médica que o Brasil já teve desde o primeiro em 1929 – cerca de 90 anos- contém menção ao uso do telefone. Todavia, continha uma irretocável orientação sobre o sigilo profissional: “… o segredo médico é uma obrigação que depende da própria essência da profissão; há o segredo explícito, formal e textualmente confiado pelo cliente e há o segredo implícito que resulta da natureza das cousas; não é necessário publicar o fato para que haja revelação, basta a confidencia a uma pessoa isolada; o segredo profissional pertence ao cliente…”

A atualidade de nossos tempos não pôde, contudo, se abster das novidades no campo da divulgação e exigem interpretações éticas, morais e legais. Impasses, dilemas e contraposições de opinião acerca do método de apresentação e troca de mensagens são inevitáveis no ecossistema da beira do leito contemporânea.

Neste século XXI, a beira do leito convive com o uso de mídias sociais, compreendendo sites, blogs, facebook, tweeter, instagram, YouTube, WhatsApp e similares que promovem textos, áudios e imagens que devem respeitar um quarteto de salvaguardas da eticidade vigente formado por sigilo profissional, autopromoção, sensacionalismo e concorrência desleal.

A recomendação oficial é não publicar fotos da relação médico-paciente nas redes sociais, elogios sobre “antes e depois”, garantir resultados, postar informações financeiras. Entretanto, é permitido abordar assuntos de natureza tecnocientífica como informações de interesse público, entrevistas, artigos. Está em desenvolvimento a construção da eticidade da ferramenta nas mãos dos médicos, o que significa o debate de uma constelação de polêmicas.

Aspecto de destaque no tema mídias sociais em Medicina é o binômio WhatsApp-sigilo profissional, haja vista que a ponta dos dedos parece estar altamente energizada e desobediente do cérebro, tornado-se um enfant terrible de impulsos por uma comunicação fácil, amiga do ego, transgressora do superego, quase que um prazer da pós-modernidade, mas, sempre tem um mas, viciante e alvo de críticas pesadas. Os ritos e os símbolos historicamente agregados à atuação do médico alertaram imediatamente sobre os riscos “digitais” de quebra da altíssima hierarquia do sigilo profissional, um dos alicerces da imortalidade de Hipócrates reforçada no seu Juramentos a cada formatura de médicos no Brasil.

O sigilo profissional na área da Medicina tem 26 séculos de existência. Hipócrates (460ac-370ac) ao retirar a Medicina dos deuses percebeu o valor do sentido de confissão com privacidade para não inibir a comunicação sobre a manifestação dos males. Desde então, em nome do sigilo profissional é vedado ao médico revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente, sendo que a proibição estende-se a fatos que sejam de conhecimento público ou após o falecimento do paciente.  Ademais, é vedado ao médico fazer referência a casos clínicos identificáveis, exibir pacientes ou seus retratos em anúncios profissionais ou na divulgação de assuntos médicos, em meios de comunicação em geral, mesmo com autorização do paciente.

No caso do uso do WhatsApp para uma conexão médico-paciente-médico pode-se intuir que haja o consentimento do paciente para a troca de mensagens, inclusive, muitas vezes ela se dá por solicitação do paciente e que o sigilo fica sob responsabilidade dos interlocutores. É desejável que o médico não somente conheça normas éticas e legais, mas também, e principalmente, tenha para si uma construção de organização e moralidade no uso. Aqueles com números mais baixos de CRM, um eufemismo para não dizer mais velhos, que já possuem um treinamento no uso do telefone, como responder  num determinado horário, após as consultas para não interromper as mesmas, inclusive, em nome do sigilo, necessitam repensar sobre o significado da nova maneira de  contato e interlocução.

No nosso cotidiano, praticamos a Bioética da Beira do leito que entendemos possa dar uma contribuição para o foro íntimo do médico acerca do equilíbrio de boa-fé entre consciência profissional e interlocução com o paciente.

Trata-se da construção de pedágios mentais com oito fundamentos captados da Ética -prudência e zelo-, Bioética – princípios da beneficência, não maleficência e autonomia- e Transdisciplinaridade- rigor, abertura e tolerância, que favorecem uma aliança médico-paciente alinhada com o resguardo dos dados.

A virtude da prudência pressupõe a incerteza e o risco e está interligada à ética da responsabilidade pela qual respondemos não somente pelas intenções como também pelas consequências tanto quanto possamos prever. Decisões prudentes sobre o uso de mídia social significam qualificar o que é para escolher como vantagem para o presente e o que é para evitar como dor de cabeça para o futuro.

O zelo, antônimo de negligência, é compromisso com bem aplicar o que foi decidido ser prudente. Cada médico deve estruturar uma organização de uso, horários, padrões de textos, distinção de emergências.

A dupla prudência-zelo satisfaz no âmbito da comunicação o artigo número 1 do Código de Ética Médica vigente, ou seja, é vedado ao médico causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imprudência ou negligência.

O princípio da beneficência indica que devemos nos comportar visando utilidade e eficácia. No uso de palavras, refere-se a uma linguagem objetiva sensível à conjugação entre a manifestação do paciente e  a visão clínica do médico. Ademais, sustenta iniciativas pela busca por um apoio  de colega ou da literatura.

O princípio da não maleficência é hipocrático, refere-se a se bem não possamos fazer, pelo menos que não façamos mal. Acontece que o progresso da Medicina fez com que seja praticamente impossível uma absoluta não maleficência, ou seja, mais recursos mais preocupação com a segurança do paciente. Desta forma, a linguagem a ser postada precisa expressar segurança, não somente contribuição para a prevenção de danos da Medicina, como também para evitar palavras danosas.

O princípio da autonomia indica que o paciente tem direito à voz ativa, mas o médico também, ou seja, ele não está eticamente obrigado a fornecer uma resposta a todos os questionamentos do paciente, quer por questão de tempo, quer por objeção de consciência, embora deva evitar ser etiquetado como desatencioso. Por isso, a linguagem a ser empregada deve ser específica para o tempo e o contexto determinado e dar equilíbrio entre acolhimento e responsabilidade do médico pelo que diz e pelo que não diz, ponderando sobre obrigações de atender ao solicitado e liberdade de atitude. Aspecto essencial diz respeito ao binômio autonomia-consentimento do paciente. Ele pode ficar subentendido pela iniciativa ou pela reação às mensagens, o que inclui ter responsabilidade pela preservação dos dados.

A transdisciplinaridade vai além das disciplinas, procura conciliar as ciências exatas e humanas, e também com a arte, a literatura, a experiência espiritual.

O rigor como fundamento da transdisciplinaridade contribui para a austeridade não somente com os aspectos tecnocientíficos, como também no cumprimento das normas envolvendo as mídias sociais.

A abertura como fundamento da transdisciplinaridade admite a aceitação de certas justificativas para flexibilidades a este rigor, em função de imprevisibilidade, situação inesperada e mesmo desconhecida até então, onde há uma exigência de uma resposta imediata que pode transgredir o rotineiro. A maturidade profissional ajuda.

A tolerância como fundamento da transdisciplinaridade reconhece o direito a pensamentos e manifestação de ideias contrárias às nossas, tanto mais admissível quanto ligada a uma opinião que bloqueia a nossa vontade e pela qual temos responsabilidade. É uma questão de respeito que embute uma vontade de conciliação de interesses, idealmente um momento provisório.

Em conclusão, o encontro do médico com o paciente por meio de mídias  sociais compreende uma dinâmica conjugação de verdades e de valores.  Do ponto de vista prático, estes oito fundamentos materializam-se num caminho atapetado pela prudência e com três pedágios mentais: no primeiro, a cancela reúne rigor e beneficência em nome do acolhimento, no segundo, a cancela reúne abertura a imprevisibilidades e não maleficência, em nome da segurança e no terceiro, a cancela reúne  tolerância e autonomia, em nome do respeito ao direito à voz ativa. Ultrapassadas as cancelas, o caminho da prudência muda para caminho  do zelo. Ah, um alerta: Não cabe a utilização do Sem parar por estes pedágios, Sem parar para pensar!

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COMENTÁRIOS

Uma resposta

  1. Sistemas de comunicação como as midias sociais e mesmo sistemas de compras e/ ou pesquisas on line, podem desenvolver algoritmos que desvendam as vidas de seus usuários. Além disto, com informatização da assistência médica que sistema é absolutamente seguro para repelir “ataques” de hackers às informações de saúde? Beneficência, Não-maleficência, Autonomia, bem como a dupla prudência-zelo, sempre serão verdades/ princípios a serem perseguidos. Proponho a questão: estamos travando uma batalha quixotesca, frente ao poder “ilimitado” da informática para o Bem e para o Mal?

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