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946- Não pare de parar para pensar

Aristóteles (385ac-322ac) ensinava andando o que ficou conhecido como escola peripatética (do grego passear ao redor de). É comum em nosso linguajar dizer pare para pensar! Não importa se as pernas estejam ou não em movimento, é essencial que tenhamos ocasiões de janelas de pensamento crítico sobre a rotina. Algo que a pandemia  contribuiu para aclarar.

A rotina representa determinações práticas mas ela não elimina a ontologia da indeterminação que suscita um hábito, o respeito a uma norma. O limite de velocidade urbana na cidade de São Paulo já foi 60 Km/h e há cerca de cinco anos tornou-se 50Km/h. Mas será que 55Km/h é de fato velocidade seguramente insegura num sentido conceitual? De repente, as autoridades podem reverter para os prévios 60Km/h ou mesmo reduzir ainda mais para 40Km/h. Bioamigo, você ultimamente parou para pensar sobre assuntos constituintes da sua rotina de vida pessoal e profissional em que indeterminações foram determinadas  Não no trânsito, evidentemente.

Eubulides de Mileto (século IV ac) foi contemporâneo de Aristóteles e um dia em busca de um exercício mental deve ter parado para pensar no significado de fazer ou desfazer um monte de alguma coisa. Ele considerou que um milhão de grãos é um monte e um grão não é, e que se aplicasse o conceito de n-1 continuado a partir do 1 milhão, dificilmente encontraria um valor determinando que o conjunto deixara de ser um monte. Concebeu, assim, o paradoxo de sorites (monte em grego) que desde então dá nós cerebrais em muitos filósofos.

No cotidiano da beira do leito, algum sistema determina uma rotina segundo critérios muitas vezes pontos de vista – é rotina, por exemplo, o médico trabalhar de manhã no hospital e à tarde no consultório. Há algum critério que justifique uma linha de corte no relógio?

A ciência é instrumento para resolver indeterminações, afirmar o quanto a unidade precisa crescer para se tornar um monte ou quando um monte decresce e deixa de ser. Um nível de glicemia em jejum, uma análise do LDL-colesterol,  uma medida da pressão arterial, um índice de massa corpórea dependem de determinações pesquisadas e validadas para fundamentar diagnóstico ou controle terapêutico. Os limites da normalidade de muitos exames que utilizei como recém-formado não são os mesmos que utilizo atualmente. Ou seja, há uma determinação convencionada que não elimina a indeterminação conceitual, o que justifica estar sempre disposto a parar para pensar, uma metáfora para pesquisa continuada.

Com o notável progresso da medicina, o conceito de doença/saúde admite interpretações. Sob o ponto de vista prático, certas anormalidades, como as de interesse cardiovascular, compartilham classificação como uma determinada doença e como um presumido fator de risco. Fumar persiste fator de risco ou a carboxihemoglobina elevada já é uma doença antes de provocar consequências funcionais e estruturais?

O fator de risco como uma indeterminação – não há certeza se será um risco de fato numa individualidade- alinha-se ao paradoxo de sorites. A hipercolesterolemia é bem ilustrativa. O colesterol é uma variável contínua pois todo ser humano necessita de colesterol para ser saudável. Considere bioamigo, um paciente pós-infarto do miocárdio que apresentava nível elevado de LDL-colesterol, figurando como um grande monte, e agora o uso de estatina transformou num “conjunto de grãos”, justificado pelas evidências de benefício de níveis em torno de 50 mg/dl na prevenção secundária. A ciência foi determinante de uma grandeza, mas persiste indeterminado qual valor na queda dos níveis de LDL-colesterol já produz benefícios.

Agora bioamigo, mentalize um paciente cujo checkup  identificou nível de LDL-colesterol cerca de 20% maior do que o limite superior da normalidade do método laboratorial. Você cogita da necessidade de uma prevenção primária e do uso de estatina, além de orientação dietética. A indeterminação será maior quanto ao nível-alvo da individualidade daquele paciente especificamente, a respeito do ponto em que o nível efetivamente muda de patológico no sentido de influência de risco para normal, isento da conotação de risco cardiovascular.

Eubulides frequenta a beira do leito, provoca impactos éticos, suscita reflexões sobre os princípios da Bioética, afinal o controle de fatores de risco  reduz chances de malefício numa visão coletiva, mas, ao mesmo tempo pode gerar maleficências  objetivas – efeitos adversos de fármacos- e subjetivas – saber dos males não necessariamente inibe o fumante.

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