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933- Belmont

O Relatório Belmont – Princípios e diretrizes éticas para a proteção de voluntários de pesquisa- formulado pelo The National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research já tem mais de 40 anos. É ponto de referência da Bioética contemporânea.

Uma análise crítica permite considerar compreensível que a aplicação do constructo mental por quatro décadas provoque certos distanciamentos do texto original em nome de ajustes para um mundo real longe de homogeneidades e pleno de imprevisibilidades.

O Relatório Belmont não poderia deixar de conter indeterminações na sua elaboração que aconteceu durante quatro dias de intensos trabalhos em 1976 e suplementada mensalmente pela Comissão até sua publicação em 1979. Uma plataforma de contribuição para prover sustentação a posições e a contraposições de objetividades e subjetividades, do racional e do emocional, da condição humana e do progresso tecnocientífico.

Os quatro grandes aspectos apreciados foram: a) os limites entre pesquisa e assistência em medicina; b) a avaliação de critérios sobre risco-benefício na pesquisa; c) a seleção de voluntários de pesquisa; d) a natureza e a definição do consentimento informado.

O desenvolvimento destes quatro temas incluiu muitas imprecisões de limites sobre os significados de respeito pelas pessoas, beneficência e justiça e o tempo encarregou-se de aplicar lápis e borracha em prol de admissibilidades éticas, morais e legais. Um trabalho de Sísifo.

Abaixo trechos do Relatório Belmont e algumas considerações alinhadas à Bioética da Beira do leito.

1. Respeito pelas pessoas
1A-  Respeito pelas pessoas incorpora pelo menos duas convicções éticas: a primeira que indivíduos devem ser tratados como agentes autônomos e a segunda que as pessoas com redução da autonomia precisam ser protegidas.

A redação utilizando a locução adverbial pelo menos e o termo convicção destacam mas não esgotam a atenção respeitosa, assim, permitindo conjecturas adicionais ao sabor de reações a circunstâncias.

1B-Pessoa autônoma é aquela capaz de deliberar sobre seus objetivos e assim direcionar suas atuações. Respeitar a autonomia é considerar opiniões e escolhas, evitar obstruir suas ações ao menos que claramente danosas para terceiros.

No contexto da pesquisa, fica vago se a eventual recusa do candidato a voluntário da pesquisa poderá representar um dano para o progresso da medicina de interesse dos terceiros, no caso a sociedade em geral.

1C- Demonstrar desrespeito pela pessoa como agente autônomo é negar seus juízos, sua liberdade de os aplicar, qualquer informação imprescindível  sem razão convincente.

O que poderia ser admitido como razão convincente? É apreciação sujeita a muitas interpretações, até conflitantes. Por isso, um Comitê de Bioética tem que ser necessariamente multiprofissional e transdisciplinar, amplamente angulado.

1D- Nem toda pessoa é capaz de autodeterminação.  A capacidade matura-se no decorrer da vida e  pode ser perdida por doenças, incapacidade mental e restrição severa da liberdade. Respeito pelo imaturo e pelo incapacitado podem exigir proteção.

Quais seriam os limites para considerar que um imaturo atingiu a maturidade e um capaz perdeu a capacidade? O conteúdo de uma certidão de nascimento? A avaliação de um psiquiatra? O impacto que nos causa? A vagueza domina. Assemelha-se à indagação tão antiga quanto embaraçosa: quantos fios de cabelo um careca tem que implantar para deixar de ser careca ou quantos fios de cabelo um cabeludo tem que perder para não mais ser considerado cabeludo? A heteronomia espreita esta oportunidade de definir e, assim, promover harmonia. O direito ao exercício individual da autonomia requerendo a vigência de heteronomias coletivas. O hebiatria conhece bem os desafios do conceito de adolescente maduro que transita pelo conceito de amadurecimento progressivo e atingimento de graus de autonomia independente de uma idade pré-estabelecida.

1E- Algumas pessoas necessitam de maior proteção, até com exclusão de atividades danosas a elas; outras pessoas requerem pouca proteção. A intensidade da proteção depende do risco de dano e a previsão de benefício. Precisa haver reavaliações periódicas.

O alerta sobre nuances e eventual ultrapassagem da fronteira capaz-incapaz  exigente de um olhar atento de acompanhamento ao longo do atendimento atesta a impossibilidade de um texto mais preciso acerca de caracterizações de comportamentos. Há muitas influências profissionais e circunstanciais na apreciação pelo médico a respeito do nível de proteção a ser aplicado a cada paciente a partir da essencial para todos.

1F- Prisioneiros constituem exemplo sobre dificuldade de prover informação adequada para sustentar o caráter de voluntariedade como indicativo de respeito à pessoa.

O Relatório  Belmont não proíbe a captação de prisioneiros, mas, por outro lado, adverte sobre chance de violência. Esta imprecisão é, contudo, extensível para qualquer candidato a voluntário de pesquisa.  É comum que a captação ocorra entre pacientes de um Serviço universitário. É de se supor que uma boa relação médico-paciente possa tornar o paciente “aprisionado” a não negar sua participação a quem “sempre lhe fez bem”. Assim, uma pressuposição que prisioneiros da justiça poderiam ser coagidos e menos informados pode ser dilatada para uma situação de “aprisionamento” relacional que se não houvesse reduziria a chance de aceitar o voluntariado. A pergunta se impõe: Se não houvesse a chance do pensamento do pesquisador sobre a grande utilidade/responsabilidade solidária da pessoa contatada (um nível aquém do coercivo)- recorde-se Tuskejee-, para que seria preciso universalizar o direito ao princípio da autonomia?

2. Beneficiência
2A- Assegurar o bem-estar das pessoas alinha-se ao princípio da beneficência.

Dois termos  que carregam enorme chance de imprecisões em função das individualidades. Não há bem-estar e beneficência absolutas, elas se referem a situações circunstanciais.

2B- O termo beneficência encaixa-se frequentemente em atos de bondade e de caridade que vão além da obrigação, mas no Relatório beneficência deve ser entendida num sentido mais forte, como uma obrigação.

Esta concepção exige a consideração de limites da omissão e seus fatores influentes.

2C-  Não fazer o mal e maximizar benefícios  possíveis e minimizar possíveis danos são expressões da beneficência

Os termos benefício e dano aplicados à beira do leito contém muita indeterminação. É comum que o grau ou o tipo conforme visto pelo médico fique dissociado da apreciação do paciente. A adjetivação de pesquisa como duplo cega ilustra bem a respeito da vagueza da expressão não fazer o mal. Maximizar e minimizar são vagos por natureza, admite subjetividades, pois, é complexo entender que o empenho atingiu o máximo ou proporcionou o mínimo e não ficou tão somente no meio do caminho. Por isso, o próprio Relatório adverte sobre o valor do termo justificável numa relação risco de dano/benefício em potencial.

2D- A admissibilidade da pesquisa que envolve crianças com mais do que mínimo risco de dano  é polêmica.

As entrelinhas da leitura indicam que a indeterminação é inevitável.

 

3. Justiça
3A-  Injustiça ocorre quando é negado um benefício sem uma boa razão.

Se benefício por si pode ser vago, boa razão torna difícil qualquer consenso sobre limites entre justiça e injustiça na beira do leito.

3B- Iguais devem ser tratados igualmente.

A indeterminação está em que são os justos que fazem a justiça, não é a justiça que fazem os justos. Assim, como a justiça existe se a fizermos, cada um pode em questões de pesquisa científica ter seu sentido de proporção.

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COMENTÁRIOS

Uma resposta

  1. Pelo menos em oncologia, existem grupos subrepresentados na seleção para participarem de protocolos de estudo nos EUA (que investem maciçamente em pesquisa): – latinos e pretos; – idosos.

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