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898- Conflitos na beira do leito e diretrizes clínicas

Costumo iniciar minhas palestras sobre Bioética com Declaro que não tenho conflito de interesses, mas que tenho interesse em conflitos.

Um dos conflitos que me importa particularmente relaciona-se à aplicação de diretrizes clínicas e compreende tópicos sobre seleção dos dados científicos, interpretação como evidência, classificação das recomendações e implementação.

É maneira de acompanhar, pelo lado de dentro o processo de equilíbrio entre dois pólos do médico, a Medicina e o paciente, no ecossistema da beira do leito. É seguir de perto a dinâmica entre o que estaria tecnicamente em conformidade com o que se pretende a melhor Medicina, à disposição da relação médico-paciente – que subtende um exercício contínuo- e a aplicação do que melhor completaria as necessidades individuais- que subentende um exercício de momento- para que resulte a “mais adequada decisão” para a situação.

Facilita analisar as responsabilidades que decorrem da capacitação para tomar decisões, enquanto locomotiva, e clarifica sobre direitos e deveres da postura de subordinação, enquanto vagão, mesmos trilhos, mesmas estações, mesmo destino.

Provoca reflexões éticas/morais/legais a respeito de dissonâncias entre ciência de medidas objetivas-mas que lembra uma linha de produção e suscita uma cultura de controle e padronização-, e arte da competência e julgamento.

Fornece suporte para apreciar a irrupção das perguntas que partem da beira do leito -mas não exclusivamente-, inspiradas pelo contato direto com as realidades mórbidas, e que, tornando-se hipóteses para pesquisas, geram dados científicos, respostas-fontes passíveis de retornarem à beira do leito que as provocou, como evidências valorizadas.

Ajuda a embrenhar-se na alta complexidade da biologia humana para conhecer sutilezas inerentes às matérias-primas fornecidas pelas doenças e ao trabalhado com elas, em vários níveis do conhecimento, que compõem o que poderíamos denominar de produto interno bruto do ecossistema da beira do leito.

Suscita entender o quanto a beira do leito comportaria diretriz clínica funcionando como “autoridade” para recomendação e obediência; e, apesar de incutir confiança, ela não cercear a liberdade profissional do médico; e, ademais, apreciar o quanto a mesma beira do leito sofre, não somente, com ambivalências perniciosas -retroalimentadas por certas infrações éticas-, como também, com a abdicação do processo decisório- pela má-atitude do desconhecimento e incapacitação, e que pode se materializar em imprudências.

Procura a real dimensão da beira do leito como ambiente para planejamento de decisões -faço? o que faço? quando faço? como faço? E, assim, repercutir o uso de diretriz clínica como estratégia para aperfeiçoar a inversão -que o médico já costuma praticar na beira do leito- do conceito que a humanidade “… está dividida em decision makers and abdicators… a maioria tende a se comportar como abdicators…muitos requerem a pressão estimulante do deadline para tomar decisão… com risco de impulsividade… “(Theodore Isaac Rubin, 1923-2019). Na terapêutica, as respostas parecem ser mais positivas, mas na prevenção, a implementação de diretrizes clínicas tem sido negativamente influenciada pela carapuça da supra assertiva na cabeça do paciente.

Diretriz clínica harmoniza-se ao uso de apoio à tomada de decisão, mas não admite o abuso, por quem desejoso de resolver conflitos de consciência, faz consulta de modo sistemático a cada tema com que se defronta e ignora o tecnocientífico.

Diretriz clínica não é onisciente e não deve transparecer ordens por si própria, como se a ela pudéssemos transferir para uma mea culpa coletiva a responsabilidade ético-profissional da recomendação, que é pessoal no âmbito do vínculo médico-paciente.

Diretriz clínica  é trabalho sério e dentro dos limites da herança da Medicina; razão bastante para que, representando a seleção da parte boa, não deva ser vista como ancoradouro para quem pretende modelos de perfeccionismo, quaisquer que eles possam ser na relação custo-risco-benefício.

Diretriz clínica é uma prestação de serviço de redescoberta, não de reescrita da literatura; ela é oficialmente uma revisão, não é mensagem original; contudo, os acabamentos que providencia a fazem origem para mensagem sobre expectativa de desempenho e segurança, exigente, como estado da arte, do saber e liderança do médico, da eficiente decodificação pela sabedoria do corpo do paciente e do enfoque social de saúde.

Diretriz clínica organiza o “caos” da literatura e oferece língua única numa torre de Babel; faz a todos, médicos sem fronteiras. Pela ordenação da experiência passada coletivizada, ela contribui para o fortalecimento do hábito de antever conseqüências da prática; preenche a necessidade de antecipações num labirinto, exerce a função de oráculo para dúvidas e cumpre o papel de senha para inverter acontecimentos mórbidos; mas o mundo real da beira do leito não é exatamente unilíngüe e, por isso, a experiência de fato vivenciada, que é sempre “poliglota”, é um filtro interposto nos canais de conexão entre a perspectiva informada no texto e a que se percebe na beira do leito, inclusive valores morais que os médicos não podem deixar de notar: “… o coração tem razões que a própria razão desconhece…” Blaise Pascal (1623-1662); em conseqüência, fica favorecido o bem discernir sobre objetivos e o bem mentalizar “end-views”, em três etapas: OBSERVAÇÃO da situação clínica atual do caso; CONHECIMENTO retrospectivo de similaridades ao observado no ambiente do ecossistema da Cardiologia; JULGAMENTO do significado prospectivo da junção da OBSERVAÇÃO com o CONHECIMENTO, para o caso.

Diretriz clínica não é algo como um kantiano (Immanuel Kant 1724-1804) Imperativo Categórico, pois se ela poderia ser admitida como um dever moral (imperativo), ela não atinge a todos, sem exceção (categórico), muito embora deva ficar sempre presente o princípio universal “faça para os outros o que gostaria que todos fizessem para todos“. Ainda na linha kantiana, uma explicação para o não categórico é que se a diretriz clínica representa a razão teórica para uma recomendação, a vontade expressa no arbítrio do paciente pode determinar uma razão prática para o desacolhimento da mesma.

Sem nenhuma intenção de filosofar, apenas de passagem, diretriz clínica pode ser analisada pela capacidade de resposta à tríade de perguntas básicas do criticismo kantiano, se formuladas à beira do leito: a) que posso saber? Diretriz clínica poderia intentar responder que o médico pode saber sobre probabilidades de utilidade e de eficácia diagnóstica, terapêutica e preventiva; b) que devo fazer? Mentalizando o que deveria ser uma conduta universal, partir da “melhor evidência” científica, que é difusa, e chegar à “evidência melhor” clínica, individualizada segundo preceitos de liberdade, esclarecimento e reorganização, no vínculo médico-paciente; c) que posso esperar? Maximização de sucessos pelo conhecimento das boas práticas e interpretação de fracassos pelo caráter biológico do ser humano.

Diretriz clínica é uma ferramenta plural quando se percebe que ela pode satisfazer teorizações filosóficas como o realismo de um fato que serve como ponto de referência a uma recomendação-exemplo: nível de pressão de 200×120 mmHg, obtida ao esfigmomanômetro; o idealismo da necessidade de se tomar providências para redução dos níveis tensionais; o racionalismo da imprescindível qualificação humana e técnica para o desempenho da missão e o empirismo das recomendações baseadas em pesquisas.

Se houver permissão para se construir uma analogia com o conceito de mídia, diretriz clínica seria meio de comunicação de grande alcance, alta probabilidade de bom retorno (clínico) de investimento (científico). Diretriz clínica representa um poder na beira do leito  que precisa ser apreciado na inter-relação com a clássica concepção de a clínica é soberana e, mais recentemente, com a noção de a clínica é soberana e a imagem poderosa.

A análise que se segue, procurei sustentar na concepção que os dados/ evidências, pela permanente construção/desconstrução, têm tanto a robustez do “eficiente plantão científico” quanto a fragilidade de “probabilidade, não exatamente certificação clínica”, para atender às boas práticas da beira do leito. Recordemos que é da essência da Medicina, as muitas angústias pelas quais o médico passa, para transformar a recomendação deveria aplicar em constatação aplicado com dever.

A aplicação de diretriz clínica necessita do ensinamento de William Bart Osler (1849-1919) “… quanto mais olhares para a vida fora do estreito círculo do vosso trabalho, mais equipados estareis para a luta na profissão…”. Qualquer sentido de rarefação da cultura geral na atmosfera do ecossistema da beira do leito prejudica a racionalidade tecnocientífica no contexto das várias especialidades.

É preciso diálogo com o conteúdo da diretriz clínica e que é “um diálogo com colegas” com poder de influir no diálogo do eu consigo mesmo, e sua “leitura rotativa” dá origem a idéias num permanente carrossel, vale dizer DIRETRIZ CLÍNICA É PARA SER RESPEITADA NA MEDIDA CERTA; e qual é a medida parece tão impossibilitada de consenso, quanto a chance de cada cavalinho representar uma suposição de resposta e todos saírem em disparada para que se obtenha um vencedor.

Cronos é pai de Quiron, que criou Asclepius, herói e deus da Medicina “… de noite Asclepius aparecia em sonho aos doentes e lhes dava conselhos… na manhã seguinte, os sacerdotes coligiam as receitas e as explicavam...” Coincidências significativas!

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