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894- Granulando o adequado (Parte 1)

O bioamigo já pensou o quanto um simples grão pode nos ensinar? Pelo adágio popular de que de grão em grão de milho a galinha enche o papo; pela lembrança que a pérola deve-se à invasão de um grão de areia numa ostra; pelo número astronômico com 20 algarismos que resulta da progressão geométrica de um grão de trigo na primeira casa do tabuleiro de xadrez, dois grãos de trigo na segunda casa, quatro grãos de trigo na terceira casa e assim por diante em progressão geométrica pelas 64 casas. Paciência, valor de algo inesperado e cautela com o que não se pode avaliar são lições bem-vindas para o exercício profissional na beira do leito.

Estes sentidos de transferência de grãos segundo objetivos e os efeitos do acúmulo carregam afinidades com apreciações críticas da Bioética da Beira do leito a respeito das tensões entre a abundância atual de disponibilidade de conhecimentos/recursos terapêuticos e preventivos e o bem-estar humano em sua forte dependência a como cada um direciona suas escolhas sobre necessidades e possibilidades de recuperação e de preservação da saúde.

A influência da forma com que cada ser humano escolhe se aproximar da medicina e das ciências da saúde em geral constitui um desafio. Quantos profissionais da saúde há que apesar de detentores do saber se encaixam em faça o que eu digo, não o que eu faço? É uma complexidade com ampla diversidade de dobras conceituais, culturais, emocionais, políticas e algumas mais. Sobre tudo isso pretende-se fazer funcionar o cientificamente obtido num “intervalo de confiança em 95 das 100 amostras realizadas”. Haja Bioética!

A intenção de produzir e seguir algoritmos é vantajosa, a experiência organizada sustentando a conduta no próximo caso, mas o médico vivenciado na beira do leito sabe o valor dos ajustes de percurso, ou seja, o quanto é o caminhar que faz a rota do atendimento. Não se pode falar em mútua excludência, mas tensões são inevitáveis. Ocorrências e intercorrências costumam trazer contraposições entre verdade, razão, bom senso e opinião leiga e desafiam a harmonia médico-paciente. “Pérolas” resultam em seus sentidos figurados de o que há de melhor e de esdrúxulo, exigindo paciência e cautela do profissionalismo.

Um aspecto do complexo desafio de escolha do caminho é a anuência participativa às recomendações médicas salpicadas cada vez mais de indeterminações. É um paradoxo da beira do leito. Há décadas, o predominante nada científico a fazer era determinante da (má)evolução, o progresso tecnocientífico não pode afiançar a (boa)evolução.

Diante da tarefa de escolher perspectivas da própria saúde, o paciente pratica o exercício do consentimento, ele pode concordar ou não com o médico quanto à aplicação, e pratica a observância ou não dos desdobramentos do consentido.

Quer dizer que o ganho da autonomia reduz a interdependência médico-paciente? De jeito nenhum! Convencer e reconsiderar são verbos decorrentes para inspirar a humana conexão médico-paciente na beira do leito. A comunicação embutida no conceito de consentimento esclarecido, ou seja, não uma informação por mera obrigação sem nenhuma intimidade, significa médico e paciente “criarem uma história” e reduz possibilidades de se praticar violências em nome de uma boa intenção, evita colocar o significado de um conjunto de palavras acima de uma autêntica relação entre dois seres humanos. Comunicação e comunicado não são a mesma coisa e como se sabe, à medida em que sobe o tecnicismo e o cientificismo desce a qualidade de comunicador… se não treinado.

O substantivo é respeito. Respeito do médico ao paciente, inclusive isentos de juízos moralizantes, facilita o autorrespeito, promove liberdade de ideias em meio às evidências científicas, zela pela individualidade. O médico não é apenas um representante da medicina e o paciente tampouco é um adventício na beira do leito.

A Bioética da Beira do leito esforça-se para bem contribuir para uma visão de autoridade da beira do leito que possa representar um poder que mescla obediência ao tecnocientífico validado e liberdade de motivação interna, ambas fornecedoras de grãos éticos, morais e legais para objetivos individualizados e coletivos. Como poder, a autoridade causa ou impede mudanças, potencialidade ou efetivo exercício de transformações.

A Bioética da Beira do leito rejeita qualquer sentido de poder manipulador e estimula o poder integrativo. O espírito da autonomia inclui dever de proposição, direito de contraproposta e idealidade de concordâncias para passos adiante.

Como bem lembrado por Hannah Arendt (1906-1975), estranho que a faculdade da vontade cuja atividade essencial é impor e mandar, abrigue a liberdade. Estranheza semelhante transposta para a beira do leito é observada entre beneficência e autonomia. Elas compartilham o sentido de valorizar a existência do paciente, mas podem seguir direções opostas. Assim como recomendar embute a vontade profissional de aplicar, qualquer senso de mera formalidade é negar o aspecto social da medicina. Em outras palavras, a Bioética dita principialista convive com preservação de “grãos” de beneficência e  remoção de “grãos” indesejados para formar um monte com valor individualizado.

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