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891- Espinhos (Parte 1)

Não é folclórico! Pacientes compram medicamentos na farmácia confiantes no valor prescritivo médico, chegam em casa, leem a bula, impressionam-se com as reações adversas, retornam à farmácia e trocam o medicamento por uma caixa de sabonete bem perfumado. No contexto da Bioética, o exercício da autonomia hierarquizada em relação à beneficência, em cumplicidade com a não maleficência.

Esta composição narrativa faz parte de uma oficina para residentes de medicina. Eles são estimulados a refletir sobre a situação. Para começo, costumo propor a questão: Teria havido falha de comunicação preventiva por parte do médico prescritor?

As discussões habituais giram em torno de uma meia dúzia de aspectos: a) inexistência de método em medicina isento de potencial de adversidade; b) objetivos e valores do paciente; c) conveniência de uma explicação completíssima do médico sobre adversidades possíveis; d) ideia de o médico ler a bula junto com o paciente e o fator tempo; e) responsabilidade assumida pelo paciente; f) opções éticas do médico caso o paciente entre em contato antes de retornar à farmácia.

A Bioética da Beira do leito interessa-se pela totalidade dos contextos envolvidos numa conduta terapêutica, desde a prudência na organização da recomendação, passando pelo processo de consentimento e continuando com os evolutivos pós-aplicação. Ela entende que se a beneficência é tecnocientificamente sustentada pela medicina baseada em evidências, a não maleficência associa-se ao caráter humano do manejo dos métodos, conjugando com a segurança biológica.

Realidades e representações mentais de sofrimento e dor conectam-se com a expectativa da beneficência redentora e com a perspectiva de maleficência pungente. Entre os dois princípios da beneficência e da não maleficência que se associam fortemente à responsabilidade do médico nos procedimentos, atua o princípio da autonomia, um direito do paciente transposto desde a bancada de pesquisa para a beira do leito.

No contexto da conciliação entre diretrizes clínicas -paradigmas da beneficência- e o mundo humano e real da beira do leito, é da utilidade didática mencionar uma parábola de Franz Kafka (1883-1924):

 “… ele (o paciente) tem dois adversários (o presente da doença e o futuro de adversidades cogitáveis); o primeiro (o sofrimento atual) acossa-o por trás, da origem. O segundo (o sofrimento mentalizado ligado ao método) bloqueia-o no caminho à frente. Ele (o paciente) luta com ambos. Na verdade, o primeiro ajuda-o na luta contra o segundo, pois quer empurrá-lo para frente, e, do mesmo modo, o segundo o auxilia (verbo não muito aplicável) na luta contra o primeiro, uma vez que o empurra para trás. Mas isso é assim apenas teoricamente, pois não há ali apenas os dois adversários, mas também ele mesmo (desejos, preferências, objetivos e valores do paciente) e, quem sabe, realmente as suas intenções? Seu sonho, porém, é saltar fora da linha de combate (preservar a sua autonomia) e ser içado por conta de sua experiência de luta, à posição de juiz (acolho ou não acolho a recomendação do médico?) sobre os adversários que lutam entre sim…”.

No contexto da convivência em mesmo método de benefícios e malefícios, a Bioética da Beira do leito aplica o termo “conjugado separado”, um oxímoro que alerta para a necessidade de pensar separadamente.  A incisão do bisturi na pele é a abertura do acesso ao órgão interno doente que causará dor, cicatriz e eventualmente intercorrências infecciosas. A tradicional resignação para um “faz parte” encobre um real incômodo, tanto é que procedimentos via cateter foram desenvolvidos.

Assim sendo, lidar com a adversidade em potencial dos métodos em medicina requer abordagens com distanciamento moderado entre o bem e o mal. O reducionismo que costuma ser empregado pelo médico na forma de relação custo-benefício é passível de contestação pelo paciente, assegurado pelo direito à autonomia.  Não nos esqueçamos, porém, da autonomia do médico, por exemplo, no que se refere a riscos proibitivos, a obstinações terapêuticas e a ditames de consciência.

Alguém diz, que beleza uma rosa, pena que tenha espinhos! Outro dirá, ainda bem que entre os espinhos há uma rosa! Uma visão do exterior, portanto um ponto de vista sobre oportunidade ou sobre desespero. A arte de aplicar ciência convive com uma coleção eles na beira do leito. Nas discussões da oficina mencionada acima, esta distinção rosa/espinho de visão é trabalhada, se seria motivo para o diálogo médico-paciente em torno da leitura da bula, adversidade por adversidade… se disponibilidade de tempo houvesse.

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