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881- O médico como um gene aperfeiçoador (Parte 5)

gene hipoFronteiras nem sempre são precisas. Na beira do leito as indeterminações da medicina acentuam as imprecisões.

Eu tive o privilégio de aprender com mestres inesquecíveis, tornados um patrimônio de adquiridos e dívidas de gratidão. Compreendi o conceito de imprecisão de fronteiras  em ciência pelo professor de geografia Carlos Marie Cantão do Colégio Pedro II, uns 60 anos atrás. Uma pessoa tão marcante que ainda conservo memória de seu modo de condução da aula.

A retenção sobre imprecisão deveu-se a sua minuciosa explicação sobre os desdobramentos do Tratado de Tordesilhas (1494) que dividiu um Brasil “inexistente”, seis anos antes da sua descoberta. É interessante como o bom professor seleciona conceitos que são úteis além da competência disciplinar.

O iminente risco de morte evitável eleva a responsabilidade do médico com a beneficência se é que ela pode ser graduada. A primeira vez que me deparei com esta situação no campo da Bioética, tendo a responsabilidade de tomar a decisão, foi como membro do Comitê de Bioética do Hospital das Clínicas. Estávamos de plantão em função de um grupo de prisioneiros em greve de fome que as autoridades decidiram internar.

A referência ética era o Art. 51 do então Código de Ética Médica: É vedado ao médico alimentar compulsoriamente qualquer pessoa em greve de fome que for considerada capaz, física e mentalmente, de fazer juízo perfeito das possíveis conseqüências de sua atitude. Em tais casos, deve o médico fazê-la ciente das prováveis complicações do jejum prolongado e, na hipótese de perigo de vida iminente, tratá-la.

Um dos “pacientes” sem nenhuma manifestação clínica apresentou hipopotassemia (2,2 mEq/l). Consideramos como risco de arritmia grave e fibrilação ventricular e iniciamos a reposição eletrolítica e a alimentação, não sem antes discutirmos a validade da conjectura prognóstica e verificarmos ausência de subsídios na literatura. O Comitê foi paternalista e não há como negar que a decisão privilegiou a beneficência. O respeito ao “paciente” foi a explicação da situação metabólica. Estávamos conscientes que a conduta terapêutica não era um narcisismo, um juízo moralizante, ou seja, que não havia uma “ajudazinha mental deliberativa” nem por estranhamentos a uma greve de fome por pessoas antissociais, nem antipatia ou aversão ao crime praticado (sequestro). Ninguém era neutro – cada um tinha a sua opinião sobre o comportamento dos “pacientes”- mas estávamos convictos que as atitudes do Comitê seriam imparciais (determinadas pelo art. 51).

Bioamigo, convenhamos, a linguagem no mundo real surpreende: na pediatria, paternal (dos pais), prevalece sobre o paternalismo (do médico), a não ser que este paternalismo apele para o paternalismo de um juiz de direito, quando, então, o paternalismo transforma-se em moralmente aplicável, em geral por uma liminar com base tão somente na versão – honesta mas unilateral- do médico. Na hebiatria, o paternalismo do médico é essencial na  sua decisão de abrigar a autonomia do adolescente amadurecido. Na clínica de adultos capazes, o paternalismo é persona non grata. Na geriatria, o ageísmo conspira a favor do paternalismo familiar.

Pode-se depreender, pois, que o fantasiado gene hipocrático precisaria induzir um excepcional discernimento sobre uso do direito à autonomia ou acatamento do paternalismo. Mutatis mutandis, fica claro como uma naturalidade deste discernimento é complexa numa infinitude de combinações de caráter e  temperamento do ser humano. Em outras palavras, a Bioética da Beira do leito tem muito forte a percepção da inadequação de um maniqueísmo (profeta persa Mani- 174-216) entre santa autonomia e diabólico paternalismo.

Aliás, a Bioética da beira do leito tem urticária gigante quando ouve alguém maldizer um comportamento na saúde etiquetando como paternalismo, interpretando como uma irresponsabilidade profissional, dissociada de uma análise detalhada dos fatos em relação às complexidades das relações sociais. Preconceitos não cabem na beira do leito, pela ausência de verdades imutáveis, decisivas e profundas.

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