Bioamigo, o conceito de tempo é muito importante para a Bioética da Beira do leito, especialmente o que a ele se refere como “sentido” de modo distinto por cada pessoa e pela mesma em circunstâncias diferentes (Albert Einstein, 1879 –1955) e o que a ele se refere como adquirido no âmbito social por um processo de aprendizagem, geração após geração (Norbert Elias, 1897-1990).
Há um aprendizado profissional a respeito do tempo necessário para o médico integrar eficácia tecnocientífica e humanismo nas proporções adequadas. É essencial o reconhecimento profissional que há sensibilidades distintas nos pacientes acerca do tempo da atenção recebida.
Cálculos sobre o tempo quantum satis em cada atendimento na beira do leito dificilmente sustentam-se numa uniformidade. Os dois seres humanos da conexão médico-paciente não devem ignorar a movimentação implacável dos ponteiros do relógio, porém, suas interações não podem ser por eles rigidamente controladas. A fixação ao tempo do relógio é mutiladora da formulação e reformulação das oportunidades resolutivas porque limita os vaivéns energizados pelas incertezas e ansiedades.
A militância em Bioética da Beira do leito enfatiza que é insuficiente satisfazer-se com o tempo medido pelo número de minutos de consulta, dias para cumprir uma receita, período de internação hospitalar ou época para retorno ambulatorial. É da medicina considerar o tempo qualitativo, específico para cada circunstância e alinhado à consciência profissional. Cada especialidade lida com o tempo a sua maneira. Há consultas, há visitas, há sessões, há procedimentos.
Num único dia, uma beira do leito pode conviver com distintas necessidades temporais relevantes para o raciocínio clínico e a decisão de conduta:
- Tempo da anamnese – representativo do passado e do presente;
- Tempo do exame físico- representativo do presente;
- Tempo dos exames complementares;
- Tempo para consulta à literatura;
- Tempo para construção do raciocínio clínico;
- Tempo para um diagnóstico definitivo;
- Tempo para aplicação da conduta- eletivo, urgência e emergência;
- Tempo para uma observação clínica;
- Tempo para uma resposta terapêutica;
- Tempo para providências de infraestrutura;
- Tempo para esclarecimentos ao paciente/familiar;
- Tempo para a manifestação do consentimento pelo paciente.
O médico, como intercessor entre a medicina e o paciente, usa na interface da medicina sua competência (conhecimentos, habilidades e atitudes) e na interface do paciente considera-o como emissor de dados e fatos e receptor de métodos.
As necessárias disponibilidade de tempo quantitativo e estruturação de tempo qualitativo são facilitadas pela organização das tarefas segundo os significados dos princípios bioéticos da beneficência, não maleficência e autonomia.
Os princípios da Bioética reforçam a tradição de fundir passado, presente e futuro do paciente no desenvolvimento dos atendimentos. São úteis para o aproveitamento do título Uma Ponte para o Futuro do livro de Van Rensselaer Potter (1911-2001) no contexto da beira do leito.
Princípio da Beneficência- Benefícios na beira do leito podem se referir a reversões do tempo de um mal presente ou a restringir o tempo de influência de fatores de risco. A primeira conotação alinha-se com a terapêutica – uma antibioticoterapia faz a bactéria ter seu tempo etiopatogênico abreviado- e a segunda com a prevenção – uma mudança de hábito (carga tabágica, por exemplo, é a multiplicação do número de maços fumados por dia pelo número de anos de tabagismo). Um aspecto temporal ligado à Beneficência é que o tempo passado exerce influência no grau de benefício cogitável. De fato, o presente clínico pode estar tão afetado pelo passado que não permite à medicina beneficiar o futuro do paciente além de um limite, quer para qualidade de vida, quer para sobrevida. Em outras palavras, o potencial (Beneficência) de realização (benefício) é influenciado pelo tempo quantitativo e pode ser, eventualmente, modulado pelo tempo qualitativo. A prudência pode favorecer e a negligência pode desfavorecer o tempo das realizações. Temas de alto interesse da Bioética da Beira do leito como terminalidade da vida, futilidade terapêutica e alocação de recursos articulam-se com a inter relação entre tempo e beneficência. Ponto de referência para a validade da mobilização da Bioética na beira do leito é a construção do pensamento: o passado já era (no sentido de tempo imutável) mas ainda é (forte influência temporal); o presente é vitrine que dá a motivação para o uso do tempo; o futuro é o tempo que exige as responsabilidades profissionais de ordem moral, ética e legal. A impossibilidade de utilização de um tempo beneficente- quantitativo ou qualitativo- pode provocar uma resignação como na terminalidade da vida (Princípio fundamental XXII do Código de Ética Médica vigente: Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados) ou uma indignação por eventual carência de recursos (Direito III do Código de Ética Médica vigente: Apontar falhas em normas, contratos e práticas internas das instituições em que trabalhe quando as julgar indignas do exercício da profissão ou prejudiciais a si mesmo, ao paciente ou a terceiros).
Princípio da Não Maleficência – Evitar malefício pode se referir a ajustes na beneficência ou tão somente a questões de segurança do paciente. Ajustar uma dose terapêutica perante insuficiência renal exemplifica o primeiro e um checklist no centro cirúrgico ilustra o segundo. Enquanto que a beneficência liga-se mais ao tempo quantitativo – sem desprezo ao qualitativo- a não maleficência abraça-se ao tempo qualitativo. Qualidade de uso do tempo para evitar desperdício de recursos (tempo é dinheiro) e consumo indevido do prognóstico (tempo é prognóstico).
Princípio da Autonomia- O direito à autonomia foi a conquista pelo paciente de um tempo decisório para si. Um tempo ético e legal. Um tempo indispensável para quem torna-se um agente moral na conexão médico-paciente. O tempo quantitativo da autonomia pode ser nenhum na emergência e infinito na eletividade. O tempo qualitativo decisório é influenciado pela capacidade cognitiva e pela matéria-prima dos esclarecimentos. O exíguo segundo como o período de tempo necessário para verbalizar as sílabas Sim ou o Não, arrisco-me a conjecturar que nos alerta que na beira do leito se por um lado o tempo voa, por outro lado o paciente é copiloto.