PUBLICAÇÕES DESDE 2014

873- Linguagem e Bioética (Parte 6)

Na beira do leito, decisões são praticadas num tempo curto e influenciam por um tempo longo na maioria dos casos. O consentimento do paciente é uma decisão com tais aspectos. Em essência, o paciente pode decidir de modo independente na conexão médico-paciente, inclusive fazer sua vontade prevalecer sobre a do profissional da saúde. O paciente poderia, deveria se submeter mas se decidir que não quer tem que ser respeitado. Mesmo nas situações de titubeio onde o paciente ordena a si mesmo mas não consegue obedecer, há que se aguardar a verbalização do consentimento. Um prato cheio para questionamentos entre deontologia, virtudes e utilitarismo. Uma oportunidade para a Bioética mostrar seus préstimos.

Um paciente abriga-se na beira do leito com ordenações de si próprio, da conexão médico-paciente e da relação com a medicina. A primeira é que comanda não consentimentos, esta conquista determinada pela necessidade de evitação de abusos registrados pela História da medicina, e no espírito do direito à autonomia não é exatamente um livre-arbítrio no sentido estrito de mim comigo mesmo, pois em geral há uma causa como um efeito adverso ou uma razão como de confiança na infra-estrutura. Se a clínica (ainda) é soberana, uma negação irreversível do paciente deve ser soberana, representa uma última instância, salvo na emergência.

No processo de tomada de decisão, o paciente já recebe certa decisão do médico ou é apresentado a opções possíveis. Desta maneira, ele pode tão somente endossar ou não única recomendação ou fazer uma escolha entre possibilidades com prós e contras.

Pretende-se que os esclarecimentos do médico façam o paciente conhecer imediatamente o que não sabia até então. Este dever profissional subentende, habitualmente, confiança na qualidade da primeira opinião ou busca por segunda opinião mais aceitável para prover a plataforma de informações para o consentimento livre e esclarecido.

Há uma proporção de razão, opinião e sentimento, comumente, na verbalização do Sim ou do Não pelo paciente, muitas vezes acompanhada de afinidade e amparo em reciprocidade, outras vezes de hesitação e espanto. O certo é que a qualificação da frequência como melhor maneira de se aprender a tomar decisões está frequentemente ausente quando o paciente recebe a incumbência de autorizar ou não uma aplicação para si da medicina ou ciências da saúde.

Pacientes tanto com perfis mais racionais que se debruçam sobre as informações quanto mais comportamentais que tendem a escolher a primeira minimamente aceitável – muitas vezes baseados numa história que contam para si mesmos e assim entram num atalho da mente- almejam liberdade de correspondência entre desejo pelo resultado e desejo pelo método. Eles estão apoiados pelo direito à autonomia, mas, não raramente, o médico precisa explicar aos pacientes que o consentimento é necessário, eles preferem pular esta parte. Tornou-se um pedágio, onde o Sem parar… para pensar não é o que motivou o princípio da Bioética, mas é o que a rotina tem dado direcionamento. Boas ideias e más aplicações são venenos lentos em Bioética, desmoralizam a nobreza de suas intenções e relegam-na à obscuridade.

Sim mais próximo de um consentimento (incluiu a chance de um Não) ou o Sim mais próximo de uma permissão (não incluiu a chance de um Não) precisa ser, de fato, um ato de liberdade do paciente. Liberdade em relação ao médico, mas não necessariamente livre dos impactos do seu estado clínico, circunstantes em geral e circunstâncias sociais, culturais e econômicas. Uma absoluta liberdade do eu do paciente tomar a decisão costuma sofrer influências mais ou menos aparentes e, por isso, fica difícil de ser avaliada.        

Responder ao médico com um Sim ou um Não como ato de autêntica liberdade sofre efeitos da doença, das recomendações necessidades diagnósticas, terapêuticas e preventivas e e das exposições sobre prognóstico, o que significa uma verbalização sob um poder de complexidades e indeterminações.

Os impactos das incertezas correm por conta do grau de novidade, probalidades dos riscos, proximidade do prognóstico, hábitos de tomada de decisão, densidade das informações e competição com certezas. Imprecisões  formam dobras sobre dobras na mente que se já são terríveis empecilhos na tomada de decisão de um profissional, imagine num leigo em momento de vulnerabilidade.

As conhecidas reações humanas de pacientes corroboram a observação de Hanna Arendt (1905-1975) que é estranho que a faculdade da vontade cuja essência é impor e mandar seja quem deva abrigar a liberdade. Mas, não se pode negar que as incertezas filtram melhor as vontades. Filtragem lembra tempo. Genuínos Sim e Não combinam melhor com o ponteiro das horas do que com o dos minutos, mas não é fácil ter o tempo como um instrumento da autonomia. No excesso de vulnerabilidade, decisões são batatas quentes para o paciente.

Na doença, fica evidente que liberdade não significa fazer o que se deseja, tão somente o que se deseja- internar doutor? Parar com as cervejas, doutor? Esquecer uma gravidez, doutor? Não é infrequente o paciente precisar se ver livre dos desejos mais íntimos em função das necessidades de qualidade de vida e sobrevida.

Desta maneira, dar o Sim no consentimento pode estar sendo um simulacro da vontade. Por isso, o paciente tem direito à liberdade de opinião sobre sua saúde, mas estará ou não sendo livre a cada etapa do atendimento? Nos exemplos acima, a liberdade de não internar conflita com o sofrimento do momento, a liberdade de manter o hábito conflita com o diagnóstico de cirrose hepática e a liberdade de manter-se grávida conflita com a presença de uma cardiopatia congênita complexa.

O mais comum é o paciente não se superpor ao modo profissional de tomar decisão, pois, ele pode perceber apenas o que deseja ouvir e pode suprimir dúvidas – enquanto que a responsabilidade do médico exige que ele considere e fale integralmente. Enfatizando, consentir sem metabolizar as informações é menos autêntico do que um Não metabolizado em termos de expressão do direito à autonomia, pois soa como tão somente uma permissão.

Conflitos ocorrem quando a liberdade do paciente de decidir prejudica a correspondência entre resultado e método almejados, o que é bem ilustrado em situações de transfusão de sangue em paciente Testemunha de Jeová. Num planejamento de férias, ao desejarmos conhecer um país distante, desejamos viajar de avião pela economia de tempo e pelo conforto. Não realizamos o desejo-resultado caso não tenhamos recursos financeiros para o desejo-método, não haja disponibilidade de voos ou tenhamos medo de viajar de avião. São situações onde a liberdade na mente do desejo do passeio fica contraposta por algum fator externo ou interno. Na doença desejamos recuperar a qualidade de vida, um resultado que necessita de um método que precisamos desejar. Havendo disponibilidade de recursos, o paciente precisa desejar se submeter ao método – tomar medicamento, receber um procedimento, mudar hábitos- e aceitar chances de adversidades. Das contraposições surgem os conflitos.

A diferença é que na viagem o desejo é apoiado pela certeza, ou seja, que uma vez desejado o resultado, as tomadas de decisão sobre os métodos – transporte, estadia, roteiro- levarão aos objetivos. Aliás, o agente de viagem apresentará opções de benefícios mas nenhuma bula de adversidades. Na doença, as incertezas sobre resultados não ficam em segundo plano, especialmente nas situações onde o consentimento é mais valorizado em função de responsabilidades, e as adversidades cogitáveis são destacadas. Desta forma, a tomada de decisão pelo paciente ocorre com seu desejo de recuperar a qualidade de vida impactado na liberdade por restrições possíveis ou inevitáveis.

COMPARTILHE JÁ

Compartilhar no Facebook
Compartilhar no Twitter
Compartilhar no LinkedIn
Compartilhar no Telegram
Compartilhar no WhatsApp
Compartilhar no E-mail

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

POSTS SIMILARES