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866- Leito hospitalar

Leito1No dialeto da aplicação da medicina com forte sotaque tecnocientífico, a associação universal paciente internado=paciente deitado destaca o móvel onde se dá a acomodação do paciente. O leito é ponto de referência para quase tudo que ocorre na internação hospitalar. Internou, deitou é correlação que faz o paciente ver ao redor de baixo para cima. Sem dúvida, acentua a vulnerabilidade.

O termo que se adotou no Brasil para o referido móvel é leito hospitalar (hospital bed em inglês, lit d’hôpital em francês, cama de hospital em espanhol e krankenhausbett em alemão). É das palavras mais frequentemente vocalizadas pelo profissional da saúde: leito de enfermaria, leito de UTI, leito de retaguarda, exame no leito, restrito ao leito, identifique o paciente pelo nome e não pelo número do leito, ocupação de leito é critério em saúde pública, leito do SUS, visita ao leito, leito pediátrico, leito bloqueado, leito vago, beira do leito. Leito é um símbolo do caminho para a recuperação da saúde. Valorizado numa fila aguardando a disponibilidade.  

No contexto de um itinerário, o leito hospitalar guarda analogia com o leito de um rio. Há um fluxo, a ocupação está em constante renovação, ora calmo, ora turbulento, mas sempre em curso dia e noite e há uma contensão, as margens do rio e a ética médica que preservam a tradição do direcionamento habitualmente cheio de sinuosidades. Da nascente para a foz, da maternidade para a terminalidade.  

Leito hospitalar traz uma conotação de moradia. O paciente nele vive por um período de tempo. É um hóspede acompanhado por alguns anfitriões. A humanização providencia para que o paciente tenha algo do tipo “sinta-se em casa, não faça cerimônia” no quanto for possível.

O leito hospitalar admite, pois, uma intenção de liberdade que, entretanto, colide com a cerimônia dos objetivos da ocupação do leito. Assim, qualquer ar de intimidade com o staff que o paciente possa sentir no leito hospitalar é contraposta, invariavelmente, por alguma sensação de intimidação. Faz parte da natureza do leito hospitalar. Curiosamente, intimidade e intimidação têm origem comum. 

A Bioética contribui para a redução da intimidação pelo princípio da autonomia, o paciente pode expressar a sua opinião, sugerir ajustes e até mesmo recusar-se a se submeter a orientações tecnocientíficas, caso entenda inaceitável como se sente violentado em sua intimidade, em sua liberdade no leito hospitalar. Em casos mais delicados de sensação de intimidação pela presença de fortes motivos médicos para a permanência no hospital, o paciente pode, inclusive,  tornar-se o efetor da alta hospitalar (alta a pedido).   

Conceitualmente, o princípio da autonomia substituiu no século XX o paternalismo. Verificou-se, a posteriori, que o paternalismo não era um bloco indivisível. Há um par intimidade-intimidação na conexão médico-paciente, denominado de paternalismo forte porque é coercitivo e há um par intimidade-não intimidação, denominado de brando porque respeita o direito do paciente ao princípio da autonomia.

O paternalismo brando que não é nem coercitivo nem proibitivo atua, por exemplo, após um não consentimento do paciente, motivado pela busca de eventuais causas da recusa pelo paciente e que objetiva re-esclarecimentos que possam fazer com que o paciente trabalhe uma auto segunda opinião. 

O paternalismo brando tem a característica de um acolhimento ao paciente que contribui para dar ao ambiente do leito hospitalar um máximo possível do “sinta-se em casa, sem cerimônia, com liberdade, em intimidade e sem intimidação”. É um acolhimento que valoriza o significado de empatia. Ele promove a beneficência, por isso mais do que paternalismo é ato mais beneficente do que persuasivo.  

O acolhimento/paternalismo brando visa a maximizar a capacidade do paciente de  tomar decisão,  definir e redefinir o que pode ser melhor para ele, dar objetividade a subjetividades das preferências, analisar e reanalisar mais ângulos de percepção do método recomendado e avaliar e reavaliar a confiança nos profissionais da saúde. 

O racional da compatibilidade entre paternalismo brando exercido pelo médico e autonomia do paciente está na interpretação de perfeitamente justo um diálogo de boa-fé entre valores do médico e divergentes valores do paciente acerca da recomendação em questão. Em termos práticos, haveria não mais do que um esforço com intimidade e sem intimidação para organizar a resposta do paciente de valor para a sua saúde e promover uma decisão legítima na individualidade no entendimento final. Não raramente, o paternalismo brando contribui para uma futura vida de fato autônoma do paciente (melhora do prognóstico) sem comprometer o direito de momento à autonomia. 

A Bioética da Beira do leito ressalta que o paternalismo brando admite legítimo não considerar uma única decisão como boa para todos, que é moralmente válida nova rodada de interpretação sobre benefícios e malefícios após – ou na iminência- do não consentimento pelo paciente.

A Bioética da Beira do leito reforça o valor – pouco destacado no cotidiano- pater da palavra leito na medicina e ciências da saúde de modo geral como depositário do maior número possível de valores do profissional da saúde e do paciente capaz que, caso a caso, interagem tendo como alvo o ajuste, quiçá um consenso e tendo como árbitro a virtude/norma ética da prudência.                                                                                                                                                             

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