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861- Quem é mesmo o condutor da conduta?

A experiência do médico depende das sequentes interações com pacientes/familiares e colaborações com colegas. A prática assim desenvolvida está sujeita a juízos morais, éticos e legais. Há gabaritos indicativos de comportamentos-padrão e há flexibilizações de atitudes que se arriscam a nebulosidades interpretativas. Um clima defensivo quanto à evitação de opiniões de transgressão está sempre em cogitação, especialmente em conexões médico-paciente novas e circunstanciais, podendo assim trazer prejuízos à autenticidade para ajustes.

Estamos 90 anos longe do artigo 4º- O médico em suas relações com o enfermo, procurará tolerar seus caprichos e fraquezas, enquanto não se oponham às exigências do tratamento, nem exerçam influência nociva ao curso da afecção  e da Recomendação ao Público 8º- O enfermo deve implícita obediência às prescrições médicas, as quais não lhe é permitido alterar de maneira alguma. Igual regra é aplicada ao regime dietético, ao exercício e qualquer outras indicações higiênicas que o facultativo creia necessário impor-lhe, do Código de moral médica de 1929.

Estes aspectos heteronômicos conviviam com escassa quantidade de recursos diagnósticos, terapêuticos e preventivos. À medida que eles foram crescendo, trouxeram maior potencialidade de abusos de prescrição e de adversidades, o que contribuiu para que a autonomia alinhada à pesquisa fosse aproveitada na assistência. O então par vigente obediência do paciente-não obediência escondida do médico ganhou a companhia da opinião do paciente antes da prescrição exigindo esclarecimentos pelo médico e cada vez mais apoiada em fontes na internet.  Ampliaram-se as possibilidades de variantes de conduta.

Objetivos justificados podem motivar métodos não tão permeáveis a aceitações das justificativas. Cada mexidinha no calidoscópio da forma como se dá o encontro médico-paciente-medicina é passível de gerar apreciações distintas sobre a moralidade dos comportamentos, a relação com regras e valores. LâmpadaUma preocupação é que as apreciações distintas podem ocorrer na sequência do mesmo atendimento, o receio que a sustentação de um acordo fronteiriço nas normas seja retirada unilateralmente – frustração do paciente/familiar com a evolução é uma etiopatogenia-, aquela figura que ficamos pendurados na lâmpada porque a escada foi de repente tirada.

O que faz o paciente retirar-se de figura de escada? Falta de treino para situações de maior vulnerabilidade provocando inabilidades de visão e antevisão, carências de firmeza e autocontrole, melhor ambientação ao mundo da medicina, dificuldades pessoais para honrar o consentimento, sustentação do Sim muito mais numa permissão (ausência da consideração de um Não) do que num consentimento (escolha por Não cogitável) e ganhos secundários.

A prática mostra que um percentual expressivo de pacientes fica satisfeito com a atenção do médico de informá-lo, sente uma redução da assimetria de conhecimento – e de poder- e aceita esperançoso- dá a sua permissão – aceitação verbal-, compromete-se com a oportunidade de ser submetido à recomendação – sem se interessar em conhecer projeções de alternativas.

Conexões médico-paciente são produtos da atividade humana, suas causas e seus desejos se entrelaçam sob peculiaridades. Uma delas é que no rumo do profissionalismo médico, o jovem estudante de medicina vai se afastando do ângulo da boa intenção do leigo-padrão que faz sustentar admissibilidades, por exemplo, como fruto do bom senso. Posso?Devo?Quero? Duelam com armas  com potencial de tiro pela culatra e regras ambíguas.

Aprendemos que conhecer intenções é importante para apoiar algum juízo, justificar eventuais contraposições de natureza ética na aplicação de meios, essencial para analisar certos significados do realizado sujeitos a ferir alguma entrelinha de texto de artigo do Código de Ética Médica ou mesmo certas tradições profissionais. Mas, também aprendemos que pode não inocentar o profissional, por isso alguém disse que o inferno está cheio de boas intenções. Garanto que receber uma cartinha do CRM comunicando que houve uma reclamação ética tem alta chance de infernizar  sua vida.

Há muitas combinações no calidoscópio da assistência de boa-fé em que o médico quis fazer ou o que o paciente quis que fosse feito podem estar alinhados com a beneficência ou com o direito à autonomia, mas não necessariamente deveria ter sido feito. Impulsos e hesitações criam tensões morais que muitas vezes carecem de tempo para certificações de segurança ética e legal.

São sempre complexas as reconstituições de intenções para interpretações éticas. Por isso, os princípios da beneficência e da autonomia causam tantos conflitos na beira do leito, tantos pensamentos de cautela sobre como poderá ser julgado amanhã certas condutas bem intencionadas, porém sob risco de juízos de violência e proibição. Os advogados, não sem razão profissional,  gostam de tudo escrito e assinado, porque há sempre o risco de aberturas nas quatro paredes da conexão médico-paciente, mesmo a mais consensual e confiável. A qualidade intencional é naturalmente algo misteriosa e muito ligada a circunstâncias que costumam variar ao sabor da evolução dos acontecimentos, dos propósitos e, inclusive, da conscientização sobre as realidades da doença e da conduta.

A avaliação retrospectiva reside, tradicionalmente, mais sobre a conduta do que sobre a pessoa do paciente, mais sobre a função da medicina, o contexto clínico e de prognóstico e os recursos. O foco sobre a tensão entre beneficência e autonomia visto como decorrente de uma sucessão de instantaneidades, contudo precisa ser ajustado para a participação ativa do paciente, para a dimensão histórica da retirada da beira do leito do aviso É proibido falar com o motorista. Pacientes Testemunhas de Jeová ilustram a dificuldade de avaliação de intenção quando não há opção de sobrevivência além da transfusão da sangue nos novos tempos onde o diálogo com o condutor é incentivado e  a demonização do paternalismo – o brando – criou a questão: quem é mesmo o condutor da conduta?

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