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860- Pensamento-linguagem-palavra (Parte 3)

Como o primeiro a gente nunca esquece, lembro do ambulatório do 7º andar do Instituto Central do Hospital das Clínicas onde, carioca já adaptado à Paulicéia, ouvi o primeiro paciente, um mineiro, recusar-se a se submeter a uma correção cirúrgica de valvopatia e continuar sendo por nós acompanhado clinicamente, diria com certa naturalidade, e que alguns retornos depois não mais insistimos. Uma psicóloga nos esclareceu que o paciente manifestava certo egocentrismo impermeável à lógica da medicina e que nos preparássemos para certo contágio na sala de (muita) espera sobre o sentido de Ordens médicas.

Lembro-me, também, do professor Luiz Vènere Décourt (1911- 2007) atualizando o seu Creio na Medicina e nos orientando sobre o humanismo, enfatizando que nossas palavras geravam significados nos pacientes pois mediavam nossos pensamentos com os deles e que nos fiscalizássemos para nunca nos distrairmos quando o paciente manifestasse suas preocupações- há mais do que anamnese para o paciente nos contar. LVDNas entrelinhashavia o ensinamento que a mente do paciente precisava evoluir de um estágio essencialmente leigo para minimamente técnico, razão para me debruçar sobre o livro Conversando com o Paciente (1975) de Brian Bird.

Foi muito interessante perceber o quanto os sons das explicações tinham respostas não verbais nos mais inibidos dos pacientes, a maioria de natureza positiva e confirmação do caminho correto para a nova relação médico-paciente. Temo que esta eficiência da oralidade esteja altamente comprometida pela informações apenas dadas por escrito ao paciente  para obter o consentimento, mais uma assinatura automática do que motivação para pensamentos integradores, medicina defensiva que na verdade é ofensiva- em seu sentido de danosa.

Compromete-se a unidade representada pela palavra para produzir as sensações que fundamentam decisões, é forte o potencial de variação da semântica quando ouvimos uma explanação bem coloquial e quando lemos a mesma informação numa linguagem que foi alvo de ajustes editorais em nome de  uma redação filtrada por muitos e sob ângulos distintos. Perda da oralidade, perda da interrelação. O paciente ler ao seu jeito não é a mesma coisa que ouvir do jeito do médico.

Eu, particularmente, posso reproduzir ipsis literis o que os colegas me disseram para obter o meu consentimento em duas oportunidades de procedimentos invasivos a que me submeti, mas não sei dizer o que estava escrito em algumas folhas que assinei no hospital intituladas Termo de Consentimento, aliás nem li antes de assinar- teria feito alguma diferença naquele momento de decisão já tomada? Teria provocado alguma nova interação entre fonema-palavra-linguagem-pensamento? A resposta é negativa.

Desde criança aprendemos que tudo tem um nome e que facilita pensar, a faculdade faz o contato com palavras próprias da profissão e, assim, o médico paulatinamente conhece termos que o paciente-leigo desconhece. Mas, agora precisa conhecer e num prazo curto. Desta maneira, o cumprimento do pre-requisito ético do esclarecimento de fato – reafirmação do já eventualmente sabido em situações prévias e absorção de inéditos –  depende de como o conhecimento necessário para selecionar Sim ou Não é gerado pela linguagem manifesta pelo médico e desencadeia pensamentos no paciente. Assim ocorre o real uso do direito à autonomia pelo paciente, um Sim ou um Não que resulta de cogitações sobre as duas possibilidades. É diferente do Sim do doutor, o que o senhor fizer está bem feito, embora muitos entendam como expressão da autonomia do paciente.  

Considerando o caso de um paciente que recebe um diagnóstico e uma orientação terapêutica que até recentemente ignorava seus significados, o esclarecimento pelo médico é tanto mais eficiente quanto mais contribui para dar aos pensamentos sequentes do paciente graus de aprendizados, descobertas, ilustrações, transformações, sínteses, análises e aplicações. Pelas complexidades, o consentimento – ou não- é dado pelo contato com a ponta do iceberg, é difícil mergulhar de fato.

A linguagem que paira entre médico e paciente expressa, habitualmente, combinações de informações – dados, fatos, observações, experiências -, conceitos – definições, teorias, princípios, leis -, pontos de vista, objetivos de resolução e inferências. Cada tipo tem seus limites de participação nos esclarecimentos a serem respeitados em nome da ética.

Evidentemente, o médico não é neutro, ele tem sua linha de raciocínio sobre implicações e consequências das condutas, mas, o respeito à liberdade de consentimento -ou não- pelo paciente, exige a imparcialidade de exposição e diálogo. Por isso, é sempre delicado avaliar a pertinência de o médico “contaminar” os esclarecimentos com modos mais pessoais do que profissionais de enxergar a recomendação, por exemplo, mais pontos de vista do que informações. Há fronteiras obscuras entre imparcialidade e não neutralidade exigidas em prol da clareza, precisão e prudência nos esclarecimentos.  O quantum satis  para cada caso cai, todavia, no paradoxo de sorites, por exemplo, o quanto de ênfase em fumar é um risco para a sua saúde caracteriza apenas uma informação para alguém que deseja vida longa mas não consegue se livrar do cigarro?

A Bioética da Beira do leito entende que o processo de consentimento pelo paciente requer que a passagem pelos filtros dos desejos, preferências, valores e objetivos do paciente seja precedida por uma integração entre o que pode haver de autossuficiência e o que o paciente necessita da participação do médico para formar os pensamentos decisórios- a proximidade que proporciona aquisições essenciais para chegar ao Sim ou Não.

Na prática, há vários cenários, destaco três deles:

  1. O paciente está perfeitamente de acordo em se submeter à recomendação do médico, apenas exerce seu direito de expressar ajustes protelatórios em relação ao timing do procedimento, ou porque tem um compromisso que hierarquiza ou porque o próprio médico não exige a atuação imediata;
  2. O paciente compreende a situação atual e o prognóstico natural, contudo, não deseja nenhuma movimentação modificadora; acontece por exemplo, nas recomendações de mudanças de hábitos considerados etiopatogenias de doenças graves entendidas como não imediatas. Diria que ocorre um grau peculiar de autonomia em relação às realidades do mundo exterior em situações de prevenção primária, onde o médico se comporta como o mestre enxadrista que enxerga o cheque-mate vários lances à frente;
  3. O paciente não se identifica com a recomendação do médico, busca uma segunda opinião, esta resulta numa diferença de conduta que adota por melhor se ajustar aos seus pensamentos.

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