Nada mais enganoso do que dizer que alguém acabou de se formar numa faculdade de medicina. É uma força de expressão, pois o médico se renova constantemente. Minhas prescrições inaugurais onde o carimbar final nutria a autoestima seriam hoje peças de museu.
Os pacientes renovam-se também, eles chegam sempre com diferenças nas expressões clínicas de mesmo diagnóstico e nas exigências de atenção.
Algumas atitudes com os pacientes fiéis aos exemplos dos colegas experientes seriam reprováveis atualmente, muito embora ajustadas á ética médica então vigente. Apenas para recordar, o Brasil coleciona nove códigos de ética médica sequentes num período de nove décadas, cada qual expressando peculiaridades da moralidade da sua época.
Renovação profissional inclui cuidados no comportamento. Guardo um sentimento de satisfação pela experiência com o consentimento pelo paciente desde suas origens na beira do leito brasileira. Nas últimas décadas do século passado, um paternalismo sem diálogo especialmente no sistema de saúde estatal foi dando lugar à atitude de inserir a pessoa (mente) do paciente (corpo) no processo de tomada de decisão.
Passou a vigorar a premissa que todo paciente maior de idade tem competência para tomar decisões sobre submissão à medicina, o médico deveria provar eventual falta de capacidade, os psiquiatras ajudariam. Dúvidas surgiram sobre o quanto o envolvimento cognitivo poderia ser negativamente afetado por fatores como cultura, idade, educação e habilidades para se comunicar. Colegas receavam que muitos pacientes não desejavam participar de escolhas, que pacientes ficariam sugestionados por uma lista de adversidades possíveis, como selecionar para não virar uma bula falante, que haveria alarmismo. Que houvesse bom senso, mas ninguém explicava o que seria mau senso.
Dois conselhos foram úteis: não é que agora o paciente consente sabendo da adversidade que sua eventual ocorrência reduz a responsabilidade profissional, até porque pode ter acontecidso por alguma falha operacional; só depois de gastar muita saliva e usar a língua como (muitos) lápis e borrachas, sentir-se passageiro de vaivéns de conteúdos, formas e estilos, você tecerá os esclarecimentos na mais adequada abrangência e profundidade necessária para o caso e de modo sensível às individualidades dos pacientes. O grande número e diversidade do movimento assistencial do InCor facilitou as performances evolutivas na rota da melhor comunicação .
Mudanças de hábito incomodam e exigem sequentes solilóquios para firmar o desejo de metamorfose. A incorporação em código de ética é sempre mais lenta, até 1988, o médico tinha o dever de informar, somente. Foi a partir deste ano que se tornou vedado ao médico desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de vida (art. 56). O aposto sobre risco de morte era importante pois o original do relatório Belmont referia-se à pesquisa clínica isenta da emergência.
O meu pensamento de um ainda jovem médico sobre a aplicação da conduta ao paciente não poderia apenas subentender que a boa-fé dos meus cuidados profissionais eliminava qualquer violência moral. Tinha que considerar indevida uma visão unilateral sobre beneficência/não maleficência para outro ser humano.
O que poderia dizer respeito ao paciente no âmbito profissional, toda a elaboração trabalhosa de uma estratégia terapêutica, não era exclusiva de mim para mim, a noção de compartilhamento foi agregada à frágil conexão médico-paciente, o que a fortaleceria. A minha intenção profissional precisava incluir a convergência, uma aproximação progressiva do paciente com as determinações e indeterminações da medicina. Imaginava cartas de baralho apoiadas uma na outra.
A modificação atitudinal – que veio como uma onda desde a sociedade para a beira do leito- vingou facilitada pela oralidade que permitia calor humano nas emissões e recepções, respeito e sensação de acolhimento, a audição e a fonação do paciente partícipes na integração entre ciência e humanismo. A Bioética presente embora ainda anônima.
Aliás, de passagem, a leitura do Juramento de Hipócrates (460 ac-370 ac) bem como de outros pensamentos dele evidencia que a Bioética é séculos mais antiga do que o registro de nascimento de 1927 por conta da paternidade do teólogo alemão Paul Max Fritz Jahr (1895-1953) e anos depois com o livro Bioética: Uma Ponte para o Futuro do bioquímico estadunidense Van Rensselaer Potter (1911-2001). Hipócrates gênio e um herói do pensamento teve a sensibilidade para perceber a necessidade social da medicina e criou com forma e estilo homem para homem, como se diz, fez a diferença, uma singularidade decisiva. Por mais que se possa supor que outro viria a fazer caso Hipócrates não tivesse nascido, ele tem o mérito reconhecido em sua imortalidade, no epíteto de Pai da medicina, vetor ético, pioneiro médico que não teve estetoscópio, carimbo… nem mesmo diploma!