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857- Absurdo

A Bioética da Beira do leito entende que um pensamento absurdo pode contribuir para a difícil convivência dos quatro princípios da bioética nos casos reais da beira do leito contemporânea.

A sustentabilidade da ética principialista compreende um equilíbrio habitualmente instável entre pensar o bem, sentir o dano, respeitar direitos e contraditórios, desejar o melhor possível e atuar sempre reorganizando-se às circunstâncias.

SRA333Um pensamento absurdo na dinâmica conexão médico-paciente- medicina tem forte ligação com o tempo e desta forma pode representar uma forma de reafirmar ou uma forma de testar (a forma mais ao gosto da Bioética).

A percussão torácica é um método tradicional da propedêutica física. Encolheu com o aparecimento da radiografia do tórax. A expertise desapareceu. Assim, por mais que possa haver saudosismos de percussão torácica por aqueles que possuem número baixo de CRM, seria um pensamento absurdo reativá-la, perder tempo com estudos sobre sua acurácia face o potencial dos exames de imagem.

A lição desta forma de pensamento absurdo é clara: não basta o mérito, é preciso o poder e a função (utilidade). Os grandes médicos da época esmeravam-se na técnica de sentir o bater os dedos (poder) e conseguiam diagnósticos (função) de dilatação cardíaca, condensação pulmonar, derrame pleural.  Assim para ter a consideração é preciso um território, uma gestão e uma linguagem. A percussão torácica perdeu as três. Neste contexto, suas irmãs inspeção, palpação e ausculta ainda resistem, sabe-se lá por quanto tempo.

Este exemplo da percussão propedêutica facilita perceber o valor da forma teste do pensamento absurdo para a sobrevivência da conexão médico-paciente-medicina. A Bioética contribui pelo forte envolvimento com um ponto de referência contemporâneo master da aplicação da medicina pelo médico ao paciente que é o consentimento livre e esclarecido como expressão do direito à autonomia pelo paciente. Objetivo essencial da voz ativa do paciente no processo de tomada de decisão sobre as necessidades de saúde é a redução de heterogeneidades em múltiplos níveis, como conhecimentos, valores e intenções.

Vamos, então, ao pensamento absurdo-teste: De repente, todos os pacientes não consentem com a recomendação mais apropriada para a qualidade de vida e a sobrevida. Não de uma forma provisória, de uma forma definitiva. Dissolve-se, assim, a conexão técnica e humana ideal.

Cada bioamigo mentalizará consequências, o absurdo permite incursões que parecem fora de propósito. Parecem, pois são didáticas, fazem precipitar algumas suspensões, dão óculos a miopias. É onde a Bioética da Beira do leito enfatiza a importância deste exercício mental de varredura da rotina, vale dizer de evitação de um suicídio na conexão médico-paciente-medicina. A medicina ficaria com a corda no pescoço pendurada sobre a beira do leito, tanto mérito e inerte.

De novo,  para a consideração não basta o mérito, é preciso o poder e a função (utilidade),  ter o território, aplicar gestão e valer-se da linguagem. Não basta o mérito da medicina, a situação absurda do não consentimento geral reforça e estimula repensar o quanto o médico- e o profissional da saúde em geral- está cuidando do território – a beira do leito-, a gestão – a função de esclarecer- e a linguagem – a representação da compreensão. A Bioética é fórum adequado para as reflexões.

Evidentemente, existem os Comitês de Bioética que podem coordenar de modo multiprofissional e transdisciplinar análises críticas e construir plataformas da tríade território, gestão e linguagem. Mas, o pensamento absurdo do não consentimento geral aplica-se pedagogicamente muito mais para a individualidade na beira do leito porque qualquer ato médico, seja qual for sua definição, incorpora obrigatoriamente algum componente de Bioética. Em outras palavras, o que acontece- por exemplo no processo de esclarecimento ao paciente-  é que passa desapercebido como expressão da Bioética por quem está aplicando. É o alter ego da Bioética da Beira do leito que chamo de Bioética de Todos Nós. Por isso, a frase com alta chance de ser dita sem percussão torácica continua existindo medicina, sem Bioética continua existindo medicina, é equivocada. A Bioética maneja muito mais medicina do que transparece nos atendimentos.

O pensamento absurdo do não consentimento geral envolve diretamente a comunicação, portanto o destaque com o cuidado com a linguagem da tríade acima referida. O esmero na linguagem  deve alinhar com nada menos do que o antônimo de absurdo: sensatez. Assim como pensar em prevenção de doença faz bem à saúde, pensar por absurdo faz bem à sensatez.

O apuro com a emissão que se torna recepção representando que ambos- médico e paciente- são agentes morais dignos de todo respeito justifica porque as intercomunicações não verbais, os diálogos, os solilóquios devem ter entre suas matérias-prima virtudes como boa-fé, prudência e tolerância.

O pensamento absurdo também permite destacar acerca da linguagem que significados distintos de emissão pelo profissional da saúde podem ser sinônimos nos dicionários, o que faz verbalizar nossos pensamentos sob algumas maneiras distintas e crer estarmos cumprindo rigorosamente o papel ético do esclarecimento ao paciente num determinado ponto do processo de esclarecimento.

A Bioética da Beira do leito alerta sobre a necessidade da percepção rigorosa pelo profissional da saúde sobre a forma que julga caber numa interação mais neutra ou mais personalizada, narrativa ou dialógica e evitar uma comunicação enviesada, preferencial mesmo.

A atenção refere-se a não distinção entre  afins como uma análise técnica em detalhes (explanação), uma descrição abrangente enfeixada pela experiência (exposição), uma clarificação e ilustração (elucidação), uma revelação de um significado não imediatamente captado (interpretação), dar uma clareza e compreensão a algo não entendido ou desconhecido pelo paciente (explicação) ou uma interpretação pessoal de algo ambíguo para o paciente (construção). Etimologia e etiologia são só termos parecidos para o profissional da saúde.

De acordo com o modo de tratar a linguagem, o paciente receberá emissões distintas da recomendação – graus distintos de paternalismo, inclusive- que serão mais ou menos apropriadas para o momento, assim influenciando a eticidade no quesito direito à autonomia.

A possibilidade de um abuso e o respeito pelas individualidades de cada um eliminam premissas de absurdo para qualquer  não consentimento pelo paciente a recomendações médicas, mas não elimina para o médico ético desejoso que o seu paciente não perca oportunidades de usufruir os benefícios da medicina uma analogia com a frase dita pelo escritor italiano Vittorio Buttafava (1918-1983): O absurdo da avareza está no fato de o avaro viver como pobre e morrer rico.

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